O velho navio cargueiro grego «Silver Sky» encimado pela foto de um dos refugiados, 
Carlos
 José, da Casa dos Rapazes de Moçâmedes (Namibe). Carlos José ao ter conhecimento deste blog enviou-me por mensagem esta foto. Tive notícia, 
que voltou para Luanda, onde acabou seus dias, lamentavelmente assassinado. Portanto isso aconteceu nos últimos 3 anos. 
A FUGA NO «SILVER SKY» em 10 de Janeiro de 1976
Mário
 Lopes viveu o auge do  processo revolucionário em curso (PREC), 
desenrolado em 1975,  tanto na Metrópole como em Angola. Tal como na 
Metrópole, mas pior que na Metrópole,  também em Angola, com os 
movimentos de libertação instalados em Luanda, o ambiente revolucionário
 ia permitindo toda uma série abusos, ocupações, etc, mesmo de 
propriedades ganhas  com o suor do rosto.
No
 final da licença graciosa que estava a gozar  na Metrópole, em Agosto 
de 1975, Mário Lopes ousou com  a família regressar a Moçâmedes, a sua 
terra natal,  para ali se radicar definitivamente.  Na sua terra natal 
assistiu às cerimónias da independência de Angola,  suportou privações e
 perigos de toda a ordem, sempre insistindo em não voltar para 
Portugal.Os movimentos bombardeavam-se  de delegação para delegação, e a
 tropa 
portuguesa assistia passivamente ao  decair da situação, enquanto  o som
 mais audível por todas as cidades e vilas de Angola  era o martelar de 
caixotes. No dia 10 de Janeiro de 1976 já não dava para suportar mais...
A
 fuga deu-se no «Silver Sky»,  o  navio cargueiro grego, que nesse dia 
deixou  a cidade de Moçâmedes,   rumo a  Welvys Bay, levando consigo 
mais de 1600 pessoas a bordo, entre brancos pretos e mestiços, homens  
e  mulheres,  crianças e velhos,   comprimidas  no convés e nos 
porões... Partilhavam a comida, o agasalho e a angústia no porvir, longe
 de se aperceberem  que aquela viagem marcava o  fim da  presença em 
terras do Namibe de quantos naquele navio  viajavam, e que de forma 
abrupta se viram obrigados a abandonar  o seu  torrão-natal.
A ideia era o afastamento temporário para o alto mar à espera que a situação acalmasse. Foi a salvação possível.
No capítulo  «Diário de bordo», do seu livro  O LADO ESCURO DA LUA,
 Mário Lopes narra as vicissitudes passadas no bojo daquele navio, e o 
drama pungente daquele milhar e meio de pessoas que deixaram  Moçâmedes,
 com destino a parte nenhuma,  gente fugida da guerra, que buscava 
noutro local, em outro qualquer país, a segurança física, único bem que 
transportavam, sem perderem a esperança de voltarem a Angola, tão 
depressa quanto  a horda assassina e a loucura irracional dos homens o 
permitisse.
Tal não aconteceu!
«...Enquanto
 o «Silver Sky» se afastava das águas da baía, no espaço angolano 
grassava uma autêntica hecatombe,  com milhares de  homens,  mulheres  e
 crianças mortos e  estropiados,  cidades e vilas totalmente destruidas,
  fome,  doenças,  guerra...  Essa era a imagem  de Angola que perdurou 
décadas após a  independência,  prova evidente  da incapacidade de 
Portugal descolonizar,  e da irresponsabilidade ambiciosa das grandes  
potências que, atirando mais achas para a fogueira, vieram dar uma 
dimensão internacional ao conflito.Seria tempo de se desmascarar os 
senhores da guerra, as potências internacionais  que estiveram por 
detrás do genocídio do povo angolano,  e todos quantos, sem deitaram um 
pingo do suor do seu rosto  por Angola, contribuiram para fazer  daquela
 terra rica,  um dos países mais pobres do mundo.  A descrição que se 
segue é a dessa viagem de retorno às origens, ou seja, a da minha viagem
 de regresso a Portugal, iniciada  no «Silver Sky», narrada dia a dia,  
bem assim  como dos meses que a antecederam, sem esquecer a saga 
colonizadora e povoadora dos portugueses em terras do Namibe, de forma  
tão genuína quanto foi vivida, tão autêntica quanto  me foi contada,  ou
 quanto  os  documentos da época o atestam,  uma herança para os 
vindouros, para que conste no correr eterno do tempo.»
A DANÇA DOS MOVIMENTOS EM MOÇÂMEDES E OS ACONTECIMENTOS MAIS IMPORTANTE
Após
 o meu regresso a Angola, em Agosto de 1975, depois de gozados quatro 
meses de licença graciosa em Portugal, concedidas pelo Banco de Angola, a
  entidade patronal, deparou-se-me um quadro verdadeiramente dantesco, 
no que respeita à situação do terrritório.
Ainda
 no avião que me transportou e à minha família, de Lisboa para Luanda, 
constatei estupefacto, e com muita apreensão, que a única mulher que ia 
no avião, e as únicas crianças,  eram as minhas.
No aeroporto.
No 
 aeroporto «Craveiro Lopes», em Luanda, era o caos e o pandemónio. 
Saltitava-se por  entre bagagens, pessoas,  lixo e confusão.  A ponte 
aérea  Luanda /Lisboa para evacuação de «retornados» atingia o seu 
climax.
Táxis eram inexistentes. Os hotéis estavam superlotados, não garantindo nem  água, nem refeições.
 
Aguardei
  uma semana, com adiamento todos os dias, pelo avião da carreira da 
«DTA»  que nos transportasse de Luanda para Moçâmedes.
 
No cais de Moçâmedes à espera para embarcar... Foto protegida pelas leis de Copyright
Chegados
 a Moçâmedes, onde nos aguardava o meu sogro Aníbal,  demo-nos conta que
 o pandemónio que tínhamos  vivido  em Luanda, tinha ali continuidade.  
Afinal,  acabávamos de fazer o trajecto ao inverso do  que toda a gente 
fazia  em loucura colectiva.  A debandada das pessoas estava no auge do 
frenesim. Fomos  tidos em Luanda como em Moçâmedes, e, decerto, como 
seríamos em toda a parte, como seres absolutamente espaciais ou vindos 
das profundezas da loucura e do irreal.
 
Na
 nossa casa, logo na noite da chegada, fomos brindados com o tiroteio 
intenso que grassava na cidade, como se duma sessão tétrica de boas 
vindas se tratasse.
Logo ali decidimos que na primeira 
oportunidade a minha mulher e as crianças iriam engrossar o imenso 
caudal da mole humana que, de hora a hora, por terra, pelo mar ou de 
avião, deixava  Angola. O intuito era o de regressar quando tudo 
estivesse mais calmo. 
O 
que se relata a seguir, é a cronologia da minha perspectiva do 
acontecido, primeiro em Moçâmedes, em seguida no Namibe, desde a  minha 
chegada, até à partida para Walvys Bay, a bordo do «Silver Sky», 
alertando-se, desde já,  que o realce dado a alguns eventos são da minha
 responsabilidade, poderão não ter tido, no contexto da guerra civil 
angolana, o impacto aqui realçado. Outros acontecimentos, decerto 
relevantes, não terão o destaque e a menção que plenamente se 
justificaria.
23 de Agosto de 1975
Após
 luta renhida, o MPLA desaloja de Moçâmedes, a coligação UNITA/FNLA, que
 se rende cerca das 19 horas, e passa a controlar a cidade.
28 de Agosto de 1975
Partiu
 hoje do porto de Moçâmedes, rumo a Luanda, o navio «N'gola», 
transportando refugiados, para evacuação aérea com destino a Portugal.
04 de Outubro de 1975
O
 dia mais triste da minha vida.  Depois de muita hesitação, pesados 
todos os condicionalismos que a difícil situação envolvia, resolveu-se 
que não seria justo expormos a nossa família, mulheres e crianças, por 
mais tempo, aos horrores da guerra. Cerca das 11 horas, malas feitas com
 o que o imprevisto e o imediatismo  permitiam levar, a minha mulher, 
nossos três filhos, minha mãe, sogra, avó Rosário, cunhada Luisa e seus 
três filhos tomaram um barco de cabotage, cheio de refugiados,  rumo a 
Luanda, para ali apanharem a ponte aérea que os levaria a Portugal.
Após
 o barco se perder no horizonte, ao regressar a casa, fiquei como que 
petrificado, tolhido de comoção, coração apertado, ao contemplar os 
quartos dos meus filhos.  Naquele vazio, a minha mente povoou-se de 
recordações, vendo a um canto, a cama do Paulo Sérgio, alí, um brinquedo
 do Jorge, acolá, uma roupa do Mário, e toda a casa a recordar-me a 
minha mulher.  Toda esta emoção era ferida ainda mais pelo estigma de 
não saber quando, e em que condições iria revê-los.
12 de Outubro de 1975
Hoje,
 Domingo, deparei com a minha irmã Fátima, o Cabé, seu marido, dois 
cunhados e tios, que chegaram de Sá da Bandeira, viajando de comboio. 
Haviam fugido daquela cidade onde estiveram presos durante dias sempre 
maltratados pelo MPLA. Traziam apenas  a roupa que vestiam o corpo. 
Desfez-se em lágrimas logo que me viu. Não consegui arranjar muita 
roupa, porque as lojas estavam vazias e em minha casa não havia nada de 
mulher para vestir.
 Foto: fuga da Gabela. A Moçâmedes chegava gente vinda do interior de Angola, na busca de porto seguro...
Telefonei
 para Porto Alexandre, ao meu irmão Jorge, que trouxe de lá, roupas 
grossas e agasalhos obtidos nos «fardos». Conseguiram apanhar o navio 
«Lobito» que partiu  4ª feira para Portugal, partiram absolutamante à 
deriva, pois no caso deles, perseguidos e marcados para morrer, deixar 
Angola, era sinónimo de sobrevivência.
 
Tropas do ELP/FNLA com o apoio de mercenários sul-africanos.
Do site: vitalvereador.wordpress.

 
Tanque Olifant sul africano capturado pelos cubanos
 
28 de Outubro de 1975
Manhã
 cedo entraram em Moçâmedes, pela estrada de Sá da Bandeira,  tropas do 
ELP/FNLA com o apoio de mercenários sul-africanos brancos, alguns 
portugueses de Angola e «mukankalas» comandados por um general 
australiano. Foi a debandada do MPLA que, fugindo como ratazanas, foram 
incendiando e destruindo o material de guerra que não conseguiram 
transportar, deixando crianças e mucubais a resistirem aos invasores. 
Houve muitas mortes  de entre as quais uma muito sentida, a do nosso 
amigo Mário «Chouriço».
 
A 
tomada de Moçâmedes foi  algo de espectacular, com tanques, camions de 
apoio, infantaria, grande aparato bélico, progredindo pelas ruas da 
cidade, palmo a palmo. Ao largo, na baía, submarinos estrategicamente 
estacionados faziam regressar a Moçâmedes vários barcos que 
trasportavam  familias e guerrilheiros do MPLA que se escapavam para 
Benguela.
Tropa disciplinada, não molestaram a 
população civil, nem mesmo a simpatizante do MPLA, transmitindo-nos 
forte dose de segurança.
  
As 
hostilidades tinham começado na véspera, à tarde, tendo o Banco de 
Angola por motivo de segurança das pessoas que lá se encontravam, 
encerrado a Agência.  Na impossibilidade de se circular pela cidade, 
passámos essa noite, bancários e clientes, no segundo andar daquelas 
instalações, reservadas aos Administrardores do Banco.
5 de Novembro de 1975
Após
 muita indecisão que perdurou  até ao último transporte, resolvi-me. O 
meu  carro, um «Autobianchi A-111», foi  o último automóvel a embarcar 
no navio «Lobito»  para Portugal, e só foi conseguido por especial 
deferência de uns amigos que superintendiam no carregamento. A bagagem, 
contendo rancho e recheio de casa, num total 7 volumes, seguiu também 
para Portugal a bordo do navio «Papacostas», último a sair de Moçâmedes,
 devendo chegar a  Lisboa  a 18 deste mês.
Tive
 imensas dificuldades em conseguir madeira para engradar a bagagem, pois
 como me atrasei, os stocks dos armazéns de madeira, aliás, como todos 
os outros, estavam esgotados. Como o barco estava prestes a zarpar, 
contratei três carpinteiros e serventes que trabalharam dia e noite, 
numa maratona contra o tempo, na feitura dos caixotes. Estes eram tão 
grandes que não cabiam nas portas, pelo que tive que partir as paredes 
do quintal da casa do vizinho para poderem ser carregados para a 
camioneta.
11 de  Novembro de 1975  (dia da Independência de Angola)
 
A
 Independência. Data histórica para Portugal e para Angola. Noite 
memorável para mim e para algumas centenas de portugueses e angolanos 
que assistiram à efeméride com discursos de ocasião e festança que durou
 pela madrugada dentro e durante todo o dia, feriado nacional, e que 
culminou com o "Baile da Independência",  no Estádio do Benfica.
De
 conformidade com o acordado em Alvor entre os três Movimentos de 
libertação e o governo português, Angola adquiria, em 11 de Novembro de 
1975, o estatuto de estado soberano, com as inerentes implicações 
políticas, sociais e diplomáticas que o acto exige. O que não tinha sido
 previsto, e muito menos acordado, foi que, nesta data, o neófito país 
estivesse envolvido em guerra civil, com os Movimentos a guerrearem-se e
 a desrespeitarem o que tinham subscrito em Alvor, demonstrando o 
governo português total incapacidade, como potência colonizante, para 
dominar o estado de sítio.
 A FNLA penetrando em Angola
 pelo nordeste, avançou com alguma facilidade até ao Norte de Luanda 
onde viu a seu caminho barrado na batalha de Kifangondo  por forças do 
MPLA apoiadas por um forte contingente de tropas cubanas, abandonou o 
seu plano de chegar até Luanda, e  despachou várias 
das suas unidades para o centro e o sul de Angola onde acabaram por 
concluir uma aliança com a UNITA.
Assim,
 no dia 11 de Novembro de 1975  foi festejado em todo o território o 
nascimento de uma nova Nação, mas dominada por forças antagónicas: A 
FNLA/UNITA,  os dois movimentos pró-capitalistas aliados, de Savimbi e 
Holden Roberto, constituíram um "contra-governo" que teve o apoio do 
então regime sul-africano e dos EUA que dominavam no norte, planalto 
central  e sul, com  sede em Nova Lisboa,  
proclamaram a independência no Ambriz e no Huambo, respectivamente, que 
passa a designar-se República Democrática de Angola. O  MPLA de 
Agostinho Neto, de tendência  pró-comunista, proclamou  a independência 
de Angola em Luanda, e passa a designar-se 
por República Popular de Angola. Face à superioridade militar das forças
 cubanas e do MPLA, apoiadas 
pela União Soviética, a aliança FNLA & UNITA desfez-se no entanto 
rapidamente.
Nesse contexto, às 00h00 do dia 
Independência, quinhentos anos após Diogo Cão ter erguido o primeiro 
padrão a assinalar a presença portuguesa por estas   terras africanas, 
 os delegados da UNITA e da  FNLA, arrearam a bandeira Lusa do mastro de
 honra fronteiriço ao edifício do Governo Civil da cidade, depositando-a
 no chão, hastearam as  dos seus  movimentos. O incrível  ia 
acontecendo. Um rafeiro que por alí deambulava  tentou abocanhar a 
bandeira arreada, no que foi impedido pelo Chefe do Posto,  Pieter Van 
der Kellen,  que, na circunstância,  representava o Governo português, 
 que a tomou em suas  mãos,  dobrou-a, e guardou-a.
Tinha
 cessado, discretamente, sem a pompa nem o simbolismo que o 
acontecimento justificava, a dominação portuguesa de quinhentos anos por
 terras angolanas. Angola caminhava para a desintegração,  e estava a 
dois passos do caos completo e do apocalipse total.  As confrontações 
entre os Movimentos sucedem-se em todo o País, que, agora, passa a ter 
uma constituição, dois presidentes,  três exércitos e nenhuma 
administração.  Agora, livre da presença portuguesa, que,  militarmente,
 e nos últimos meses  se mostrara inoperante, indecisa e timorata, 
continuava, com mais fervor, sem trincheiras nem tréguas, o caos, a 
confusão, o genocídio tribal e a luta sangrenta pelo poder e pelo mando.
 Oxalá esteja profunda e redondamente enganado, mas ir-se-ão passar 
anos, talvez décadas, até que o povo angolano obtenha a Paz e a 
Tranquilidade que ambiciona e a que tem direito.
30 de  Novembro de 1975
No
 porto comercial da ex-Moçâmedes, agora cidade do Namibe, mãos 
criminosas fizeram deflagrar violento incêndio nos contentores e 
caixotes pertencentes a muitas pessoas que, à desfilada, tinham vindo 
dos distritos do Huambo e da Huila, na expectativa de poderem embarcar 
os seus haveres para Portugal.  Muitos daqueles pertences estavam já 
abandonados por seus proprietários terem partido para destino incerto, 
confirmada que fora a impossibilidade seu transporte.
Caixotes no cais...
Chega
 até nós os ecos do movimento político-militar ocorrido  em 25 Novembro 
em Portugal, que, sob a liderança militar do General Ramalho Eanes, 
subtrairia ao Brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho, a preponderância 
política que detinha no Estado português.
 
Portugal
  havia estado, ao que parece, à beira de uma guerra civil, com um 
governo fragilizado que não governava, as estruturas militares 
politizadas e dependentes de grupos mais ou menos organizados, que 
ambicionavam o poder a todo o custo, e o povo descrente, intoxicado e 
manipulado por forças extremistas de esquerda que, após a queda do 
general Vasco Gonçalves, em 28 de Setembro, se tinham apegado ao símbolo
 que a figura prestigiada do General Otelo constituia, para prossecução 
dos seus intentos ditatoriais.
02 de Dezembro de 1975
Feriado
 nesta zona de Angola. Tomou  posse o primeiro  governo da República 
Democrática de Angola, em Nova Lisboa, que o governo  do MPLA em Luanda 
apelida «fantoche»,  ignorando-o.
07 de Dezembro de 1975
Através
 de um telegrama do meu cunhado Lisboa para o «Roçadas», acostado ao 
porto, fiquei a saber que a minha família está bem. Recebi também uma 
mensagem de um rádio amador de Sá da Bandeira dizendo-me que tinha 
telefonado para a residência daquele meu cunhado, em Lisboa, e que 
estavam todos bem.
27 Dezembro de 1975
A
 UNITA bombardeia o navio «Guilherme Capelo» que entrou no porto do 
Moçâmedes, autorizado pela FNLA para abastecer de combustível o  navio 
«Roçadas», acostado ao porto comercial.  Face à essa impossibilidade,  o
 «Guilherme Capelo» fez-se ao mar.
28 de Dezembro  de 1975
O
 «Roçadas» pela calada da noite fez-se ao mar,  não chegando a 
descarregar a carga destinada ao Namibe, e que muita falta fazia por 
conter bens essenciais como alimentos e medicamentos. Ficámos a partir 
de agora sem um único meio de comunicação com o exterior,  via rádio, 
nomeadamente com Portugal, o que muito me entristeceu.
29 de Dezembro 1975
Na
 sequência de profundas desavenças entre movimentos  que se tinham 
aliado e detinham  o controle do distrito, estoirou a  confrontação 
armada entre eles.
Pelas 09h30 da manhã  iniciou-se um 
tiroteio nas ruas de Moçâmedes entre FNLA e UNITA, que durou até ao cair
 da noite do dia seguinte.  Ficámos todos no Banco, empregados e 
clientes,  e só às 19h30,  no amainar da refrega,  saimos, 
dissimuladamente,  para  as  nossas casas.  Foram 22 horas de fuzilaria 
intensa, com algumas baixas entre os beligerantes.
No 
final do dia correm rumores de que a UNITA domina militarmente a 
situação, estando a FNLA a aguardar a chegada de reforços provenientes 
de Sá da Bandeira. 
Cerca  das 21H00, alegando motivos de segurança, o locutor Henrique Minas encerra a emissão do Rádio Clube de Moçâmedes.
Agora
 é a FNLA que controla o sul de Angola e Nova Lisboa. A UNITA está em 
Benguela e no Lobito,  e nalgumas localidades a leste.
Cada
 vez, a luta pela nossa permanência é mais dificil e penosa. Os 
 alimentos vão escasseando e a  electricidade,  que vem da barragem  da 
Matala foi cortada pela UNITA.
Torna-se impossível a fuga da cidade. Não há aviões, o «Roçadas» zarpou, e é perigoso andar pelo deserto, pois muitos «Unitas»
 andam a monte e os «mucubais», armados pelo MPLA, duz-se que têm feito 
grandes chacinas  entre a população branca e negra das «concessões» no 
Camucuio, Lola, Caitou e outras.
As
 ruas estão desertas, A cidade de-Moçâmedes já não tem quase ninguém, e 
os poucos que ainda cá estão, não saem à rua. A escuridão impera. O medo
 tolhe. Os boatos proliferam e aumentam o desânino. Na casa onde moro, 
sozinho, desejando o melhor mas adivinhando o pior, atirei 
apressadamente  algumas roupas para dentro de uma pequena mala de 
viagem, na perspectiva de uma fuga rápida a acontecer durante a noite.
30 de  Dezembro de 1975
Eram
 7,30 horas.  Dois Jeeps «Land-Rover» circulam pelas ruas da cidade, 
dando vivas à FNLA. Os «Kuachas», derrotados,  teriam cessado o tiroteio
 refugiando-se,  uns, no deserto,  outros, na própria cidade, em casas e
 quintais abandonados.
Às 
9,30 o Rádio Clube divulga um comunicado da FNLA em que se alerta para 
as pessoas regressarem às suas casas em virtude da situação não estar 
completamente normalizada. Pede que médicos e paramédicos disponíveis se
 dirijam ao Hospital para assistirem aos feridos e disponibilizarem 
medicamentos que tenham em seu poder. É lido também um apelo dos  CTT 
para telefonistas regressarem aos postos de trabalho.
Mais tarde,  pela 16,30 horas,  já com os mais
 curiosos a circular pela cidade, assiste-se à tomada do Posto 
Adminstrativo de Santa Rita, nos subúrbios da cidade,  onde se acoitavam
 elementos da UNITA.
Continua a ouvir-se o tiroteio, 
das acções de limpeza por parte da FNLA, que vasculha minuciosamente, 
casas, quintais e residências de responsáveis e simpatizantes do "Galo 
Negro".
Após a tomada da 
cidade por tropas da FNLA, com o apoio ligístico e operacional dos do 
exército regular sul africano,  viveu-se uma certa acalmia.
As
 tropas sul-africanas, disciplinadas, confinaram-se ao seu 
aquartelamento,  que foi do exército português,  tendo, dias depois, 
retirado para o sudoeste africano,  ficando as estruturas civis da FNLA a
 dominarem a cidade. Curto, porém, como se veria depois,  foi este 
período de sossego. 
10 de Janeiro de 1975, Sábado
Pelas
 10H30 surgem as primeiras notícias de que se travavam violentos 
combates em Sá da Bandeira entre UNITA e FNLA para conquista da cidade 
que estava de posse deste último Movimento, constando que as forças do 
"Galo Negro" tinham já iniciado a marcha descendente, pela serra da 
Leba, com destino a Moçâmedes e a Porto Alexandre.
Às
 11H30, o Rádio Clube, ante a perspectiva da invasão da cidade por 
forças da UNITA que estaria por horas, e face às notícias alarmantes que
 se propalavam pela cidade, divulga um comunicado em que o delegado da 
FNLA, reconhecendo a inferioridade de homens e de armamento, aconselha 
calma à população e ordena que se dirijam todos para o porto comercial 
ou para as instalações daquele Movimento, a fim de serem evacuados, de 
barco ou de automóvel, protegidos por militares.
No
 momento em que esta notícia era difundida, como funcionário do Banco 
Angola, encontrava-me num  armazém vistoriando mercadoria vinda de 
Portugal,  cuja documentação vinha à ordem e responsabilidade do Banco. 
Como o  importador tinha já abandonado Angola, a mercadoria que 
integrava géneros alimenticios e vinhos, nunca seria desalfandegada, 
correndo o risco de ser roubada ou de se deteriorar se o Banco não 
tomasse medidas urgentes para o seu aproveitamento, tendo em 
consideração a fase de carências de toda a ordem que se vivia. Dirigi-me
 de imediato à nossa «messe», composta de amigos e colegas do Banco de 
Angola, como o Custódio, o sogro, o Aquinaldo Matos e genro, o Osório, o
 Zeca Santos, o Correia do talho, o Mena dos Correios, este,  de grande 
utilidade por conhecer a radiotegrafista do navio «Roçadas», e cujas 
familias, tal como a minha,  já se encontravam a recato em Portugal. 
Após muita controvérsia,  e de pesarmos bem os prós e os contras, 
decidimos, unânimemente, com muita mágua, aproveitarmos esta 
oportunidade para sairmos do Namibe.  Estávamos cansados da guerra, 
duvidávamos se a nossa teimosia em permanecer faria sentido, 
reconhecíamos a nossa impotência para inverter fosse o que fosse, as 
perspectivas de futuro eram nulas, angustiava-nos o paradeiro 
desconhecido e a sorte das nossas familias em Portugal . Cada vez que um
 movimento ocupava a cidade, era maior a sanha da destruição, vingança, 
ódiio e morte.
Na compita pela 
dominação das cidades, vilas e povoações, os três Movimentos que fizeram
 a luta armada contra a presença de Portugal em Angola (MPLA, FNLA e 
UNITA) degladiavam-se entre si,  e, quando dominavam uma cidade ou 
região, para além de exercerem despoticamente a soberania militar e 
administrativa sobre elas, imputavam às populações simpatias pelos 
movimentos que os precederam no domínio da cidade.
Para
  identificação das pessoas afectas aos vencedores, foram concedidos 
cartões de simpatizantes ou aderentes e como os três Movimentos se 
revesavam  ciclicamente, no controle e permanência nas localidades, era 
normal a maioria das pessoas serem portadoras dos três ditos cartões de 
identificação.
O controle das pessoas
 no seu labutar quotidiano, era feito com muita insistência e invulgar 
aparato bélico por patrulhas de soldados, especialmente  em relação aos 
individuos de que, ou se suspeitava com razão ou não  de serem 
simpatizantes de outro Movimento, ou por exercerem algum cargo cívico de
 algum destaque,  ou por serem brancos ou, simplesmente, por não haver 
nenhuma razão.
Tinha que se ter o 
extremo cuidado de termos sempre à mão o cartão certo do Movimento 
certo. Quando se viajava,  e  como não se sabia qual o Movimento que 
controlava determinada região do percurso, era quase uma lotaria 
adivinhar-se qual o cartão que tínhamos que exibir, quando nos era 
exigido. O meu Pai era camionista, e numa das viagens em que transitava 
de Nova Lisboa para Moçâmedes assitiu, sem nada poder fazer, ao 
espancamento brutal, até quase à morte, do ajudante do seu camion, só 
por pertencer à raça «bailundo» que eram hostis aos agressores. Quando o
 meu Pai, não se podendo conter, lhes solicitou que parassem com aquela 
barbaridade, um dos agressores encostou-lhe a arma ao peito e retorquiu,
 espumando de raiva: -"Cala-te branco de merda, se não acontece-te o mesmo!"
Certa vez na cidade, mandaram-me parar. -"Tem cartão, camarada?" Inquiriu o soldado. -"Tenho sim senhor". "É preciso mostrar?" retorqui, remexendo nos bolsos. -"Se tem cartão não precisa mostrar". Se não tivesse,  é que era preciso. Saiu-se o militar, triunfante, dando-me ordem para avançar.
Nesta
 fase da nossa permanência em Moçâmedes, como em toda a Angola, havia 
gente a menos e automóveis a mais.A cidade de  Moçâmedes era também 
procurada por muita gente das cidades do interior que buscavam nos 
portos comercial e mineraleiro, transporte para sí, familia, e bens. Na 
impossibilidade de o conseguirem, estes eram deixados à guarda de um 
amigo, de um familiar, ou simplesmente abandonados.
Os
 automóveis circulavam até lhes faltar o combustível  (só conseguido a 
contrabando), quando se  lhes  adivinha uma «pane» irreparável, ou, 
quando conduzidos por guerrilheiros embriagados, terminavam as loucas 
correrias enfeixados na esquina de uma casa, ou num qualquer tronco de 
árvore.
Num dia, manhã cedo, soldados
 armados  fizeram «alto» a uma carrinha que transportava dois individuos
 brancos. O condutor fartou-se de gesticular, mas o veículo só parou 
quando se espatifou contra um muro,  o «chauffeur» morto por uma bala 
que,  atravessando o vidro de trás da cabine, lhe perfurou a nuca, 
provocando morte instantânea.  Verificou-se então que o infeliz condutor
 não tinha obedecido à ordem de parar por o automóvel não ter travões.
Mais
 dois incidentes de entre muitos de que fui testemunha, arreigaram em 
mim a firme convicção de que era inviável a permanência branca nestas 
paragens.
No primeiro, soldados super armados, 
irromperam pela Agência do Banco de Angola, onde trabalhava, pretendendo
 resgatar um cheque, passado à ordem da Delegação da UNITA. Como as 
assinaturas não conferissem e face à negativa do pagamento do cheque, 
exigiram de imediato o seu resgate, sob a ameaça de abrirem fogo e 
destruirem tudo. O cheque foi-lhes pago, como é óbvio.
De
 outra fez fui com o meu pai ao Cinema, numa  noite em que tal ainda era
 possível. No "hall" de entrada,  um jovem soldado, ainda púbere,  
impante de orgulho na sua farda de camuflado, levando a tiracolo uma 
espingarda metralhadora, peito cruzado por munições, interpelou o meu 
pai, pedindo-lhe um cigarro.
-"Não tenho, porque não fumo", disse o meu pai, calmamente.
-"Cabrão de branco, que nem sequer tem um cigarro para me dar",
 ripostou o heroi, segurando firmemente na arma, à espera, 
possivelmente, de reacção. Foi ouvir e calar. Pelo menos para mim, 
Angola estava irremediavalmente perdida.
A
 cidade estava completamente isolada do resto do território. Não havia 
transportes porque faltavam combustíveis.  Não se podia circular, por 
falta de segurança.  Estas duas situações inviabilizavam qualquer 
intercâmbio entre cidades vizinhas. As comunicações via rádio não 
funcionavam, como não funcionavam os Serviços básicos, Bancos, Hospital,
 Organismos públicos e comércio. Todo o pulsar da vida comunitária 
permanecia em mórbido estertor, e a única esperança de comunicação com o
 exterior estava num cargueiro grego atracado ao porto,  e que as 
tropas, prudentemente, não deixavam zarpar. Não podíamos perder, como 
não perdemos, esta última oportunidade de nos pormos a salvo.
Parti
 de imediato à procura do meu pai e do meu cunhado Pedro, familiares 
mais próximos, que sabia ainda estarem na cidade.  Não consegui 
contactar o meu pai, e o Pedro despreocupado,  ignorando o que constava 
pela cidade, estava na praia, desfrutando o prazer do sol do início do 
Verão, não suspeitando de que naquele sábado  o fazia pela última vez 
 na bonita e mítica Praia das Miragens, fronteiriça ao Casino. 
Depois,
 foi o emalar frenético do que estava à mão, o abandono precipitado das 
casas, o aliciar dos mais renitentes em ficar, e o rumar apressado para o
 porto, não sem uma única olhadela pela casa devoluta, pelo carro 
abandonado, pelo amigo hesitante que fica, por tudo o que nos envolvia e
 que foi, durante tantos anos, uma vivência plenamente vivida.
 
Cerca
 das 18H00 horas, após se ter dirigido por duas vezes às pessoas 
alojadas no «Silver Sky», navio de nacionalidade grega  que se 
encontrava aprisionado no porto do Moçâmedes, o Felício, funcionário da 
Administração Civil, delegado da FNLA, de raça branca, visivelmente 
comovido, falando pausadamente, disse:
«A
 sinceridade com que vos falo nas horas boas, é a mesma com que vos falo
 nas horas más. Conforme prometi, aqui estou a dar-vos mais notícias 
sobre a situação. Até este momento não temos notícias seguras sobre a 
evolução dos acontecimentos em Sá da Bandeira.  A situação é indefinida.
  Acho que não vale a pena correrem-se mais riscos inúteis.  A partir 
deste momento, o vosso destino é este navio, que rumará de imediato para
 Walvys Bay. Vou dar ordens neste sentido ao comandante do navio. Boa 
sorte e...até um dia.»
Walvys
 Bay é uma pequena cidade piscatória situada no território vizinho, 
outrora conhecido por Sudoeste Africano, a cerca de 480 milhas a sul de 
Moçâmedes. A capital é Windhoeck, no interior do país, com cerca de 60 
mil habitantes. O poder político é  ilegalmente assumido por um 
Administrador-Geral designado pelo governo da África do Sul, que 
administra o território, já depois das Nações Unidas terem declarado o 
território, um Estado soberano da África Meridional, desde 1968.
Os
 seus 824 269 Km 2 estão impantados na faixa litoral desértica do 
trópico de Capricórnio –deserto do Namibe - , este por sua vez, 
confinando com o extenso Kalahari, planaltico desértico, habitado por 
hotentotes e bochímanos. Tem cerca de um milhão de habitantes, sendo o 
primeiro produtor mundial de urânio e o segundo em diamantes.
O
 procedimento realista, honesto e de elevado espírito de solidariedade 
revelado pelo Delegado da FNLA, numa altura dramática em que estavam em
 jogo o destino e as vidas de cerca de 1600 pessoas, de entre as quais 
muitos velhos e doentes que os familiares iam deixando no afã de 
deixarem Angola, calou bem fundo em todos quantos «tomaram de assalto» o
 navio. Logo ali tentaram demovê-lo de nos deixar. Mas, resoluto, desceu
 do portaló, embora com a promessa de voltar, para viver connosco  a 
incerteza do destino dos que, frustradamente, se sentiam sem Pátria, sem
 Rumo e sem Futuro.
Soube-se
 mais tarde, por relato de pessoas que estavam na cidade do Namibe, e 
presenciaram antes de partirem no rebocador «Vouga», que o Felício e 
militares da FNLA dinamitaram as instalações do Banco de Angola e de lá 
retiraram todo o dinheiro e valores. Naquela esquina envidraçada da Rua 
dos Pescadores, em Moçâmedes, havia notas no chão das ruas, como folhas 
caidas em dia outonal.
No 
crespúsculo de uma tarde quente do Verão de África, e com a noite a 
ameaçar envolver-nos  como que cúmplice do nosso triste destino, o 
navio, de luzes apagadas,  solta as amarras,  dolentemente, afasta-se do
 cais, rumo ao desconhecido.
Crianças no cais. Foto protegida pelas leis de Copyright
 
 ERA A FASE ESCURA DA LUA A ENVOLVER TUDO E TODOS... 
«DIARIO DE BORDO» DE UMA VIAGEM ESPERADA
 
Cortaram-se
 definitivamente para muitos, senão para todos, os últimos laços físicos
 que nos ligavam a Moçâmedes,  a Angola, à nossa Pátria. A comoção era 
visível em todos os rostos. O silêncio de cada um e de todos era 
aterrador, a tornar ainda mais pesada a negritude da noite que caia. 
Lágrimas rebeldes rolavam pelas faces enrugadas dos mais velhos, 
tentando todos, aperceberem-se da transcendência daqueles amargos 
momentos.
 Ainda na baía de Moçâmedes, uma familia de refugiados: foto protegida pelas leis de Copyright
Um rol de interrogações desfilava no meu 
imaginário e de todos os meus companheiros de aventura. Que fazer? Que 
destino? Como sobreviver apenas com uma pequena mala contendo roupas? 
Onde e como estariam a minha mulher e os meus filhos postos a recato em 
Portugal? Será que aquele país a viver intestinamente a ressaca da 
revolução, e cujas notícias acompanhávamos pelos relatos da BBC, ou a 
comunidade internacional sabiam da nossa existência e achariam solução 
para nós? Para tantas interrogações, uma mão cheia de NADA e outra 
prenhe de COISA NENHUMA.
 
Moçamedenses em fuga... Foto protegida pelas leis de Copyright
Moçamedenses em fuga...Foto protegida pelas leis de Copyright
Entretanto, a cidade ia ficando longe, cada vez mais longe, triste, abúlica, envolta no manto plúmbeo da noite.
 
Adeus Porto Alexandre, minha terra natal, da minha meninice descuidada, livre, feliz, como foi a de todos os meninos naquela terra. Adeus Moçâmedes,
 dos meus sonhos de adolescente, de homem feito, onde conheci e amei a 
minha mulher e onde nasceram os meus três filhos.  Parte de mim aí fica 
sepultado para sempre,  nas areia cálidas do  teu deserto,  e nas 
quentes águas das tuas baías, praias e enseadas que tantas vezes 
calcorriei. Todas as ruas, becos, caminhos, picadas, bocados de ti, são 
também pedaços de mim, arrancados violentamente do meu corpo por maõs 
enegrecidas e assassinas. Perpassa pela minha memória a panóplia de 
emoções de uma vivência feliz, que julgava ter a duração da minha vida.
Não
 me banharei mais nas tuas  praias, que vão do Cabo de Santa Maria à foz
 do Cunene. Não experimentarei mais o êxtase e a comoção das caçadas, da
 Pediva ao Iona, passando pelo Tambor, Espinheira, Virei ou Pico do 
Azevedo, cruzando o deserto em todas as direcções, pelas «mulolas», 
picadas e trilhos sem fim, dormindo ao relento, noite dentro,  farol do 
Piambo cintilando ao longe, escutando o marulhar das ondas batendo nas 
rochas, ou, no dia seguinte, lavando e acondicionando a caça nas praias 
do Kangulo, Mariquita ou Três Irmãos, para ludibriarmos a vigilância dos
 fiscais dos Serviços Veterinários. Adeus pesca submarina nas Pedras 
Negras, Cabo Negro ou Baía das Pipas, preliminar da subsequente 
caldeirada que «in locco», só o meu sogro sabia fazer e condimentar a 
preceito.
Refugiados moçamedenses em fuga... No centro, Albertino Gomes e Artur Trindade e esposa. Foto protegida pelas leis de Copyright
 
Do
 porão deste navio, a miscegenação de raças e de credos, de brancos, 
pretos e mestiços, homens e mulheres, crianças e anciãos dão-me uma nova
 perspectiva de convivência inter-racial e de solidariedade humana.
 
No
 silêncio desta tenebrosa noite de sábado, 10 de Janeiro de 1976, que, 
para sempre ficará na minha memória, entre a multidão que partilha 
comigo o mesmo espaço, a mesma angústia,  e a incerteza do mesmo 
destino,  sinto-me só, triste e abandonado, qual corpo senil, sem vida e
 sem préstimo.
Navegando no mar alto,  com roupa a secar...Foto protegida pelas leis de Copyright
Do
 tombadilho, contemplo o horizonte, e à medida que a cidade vai ficando 
mais longe, com o oceano ganhando espaço de permeio, os olhos 
humedeceram-se-me de lágrimas de há muito não choradas, por estar ciente
 de que nunca mais voltarei  a  Moçâmedes/Namibe nem a Porto Alexandre. 
Paira também o desespero dos meus companheiros de jornada, brancos, 
pretos e mestiços, homens  e  mulheres,  crianças e velhos,  a imagem, 
afinal, da colonização «sui generis»  perpretada pelos portugueses em 
África e no mundo e que outros brancos e pretos, falando ou não outros 
idiomas, derramando-se por poltranas e gabinetes luxuosos ou 
movimentando-se nas «chanas» e matas desta Angola purulenta de chagas 
que já fedem, insistem em renegar ou escamotear.
 
11 de Janeiro de 1976.  Domingo
O
 final da noite de ontem e a manhã de hoje foram ocupadas em 
organizarmo-nos. No afã da partida, e porque a mesma foi decidida de 
imediato, poucas pessoas se prepararam com o indispensável. E o 
indispensável  era, necessáriamente, tudo quanto se prendesse com a 
alimentação, vestuário, agasalho e medicamentos.
Por
 volta das 16,00  horas foi servida uma refeição quente com o que foi 
possivel confeccionar. Ordeiramente, as pessoas formavam fila e iam 
sendo servidas até a comida acabar.  Os menos expeditos, obviamente não 
eram contemplados, e, se nada tivessem de seu para comer,  teriam que 
aguardar por nova refeição no dia seguinte.
 Procedendo à lavagrm de roupa :foto protegida pelas leis de Copyright
Muito
 embora em Janeiro faça calor, as noites são muito frias e, quanto a 
agasalhos, também não fomos muito previdentes.  As pessoas que não 
quizeram, ou que não puderam ir para os porões, tiveram que pernoitar no
 tombadilho e convés e arrostar com o frio e a humidade da noite.  Os 
que podiam, cediam agasalhos, especialmente aos mais idosos ou 
adoentados e como durante o dia o Sol era abrasador,  houve que cobrir 
todo aquele espaço com lonas e mantas , sarapilheiras, tudo o que 
pudesse resultar em abrigo.
 
12 de Janeiro de 1976.  2ª feira
Cerca
 das 9 horas, avistou-se Welvys Bay. O navio não foi autorizado a entrar
 no porto, tendo ancorado fora das águas territoriais. Quase de imediato
 foi visitado por médicos e autoridades sul-africanas. Após se 
inteirarem da situação em que nos encontrávamos,  foi evacuada uma 
senhora, que necessitava ser hospitalizada.
 Ajudando ao desembarque de idosos e doentes: foto protegida pelas leis de Copyright
Continua
 a expectactiva sobre o nosso destino. Os noticiários são escutados 
atentamente por toda a gente, retransmitidos pelos alti-falantes de 
bordo. Nada noticiavam cobre a situação do «Silver Sky».
 
Durante
 o dia, vários aviões sobrevoaram o navio e eram visíveis fotógrafos e 
repórteres de televisão ou cinema. Mais autoridades sul-africanas 
visitaram o navio, nada transpirando dessas visitas.
13 de Janeiro de 1976. 3ª feira
As
 noites continuam muito frias. Pela manhã deparou-se-nos uma situação 
que muito nos entristeceu. Uma senhora octogenária  de uma  família  da 
Torre do Tombo, em Moçâmedes, viajava no tombadilho abraçada à filha, 
cega, corpo definhado pela sub-nutrição, ambas enroladas no mesmo 
cobertor. Eram absolutamente dependentes do auxílio dos outros e naquela
 posição de abraço fraterno permaneciam. A mãe, por já não poder andar, a
 filha, Linda de nome, por ser cega e doente. Uma dependente da outra, e
 ambas da caridade alheia.  De manhã, deram com elas imóveis, como era 
esperado,  a filha abraçada à mãe que era cadáver. Falecera durante a 
noite, sem que ela disso se apercebesse.
A
 vida, porém, tem que continuar, e a expectativa , também. Os géneros 
alimentícios vão rareando. Houve necessidade de se concentrar todos os 
alimentos dispersos por todos nós, para se poder confeccionar uma única 
refeição diária.
Uma 
equipa médica da Cruz Vermelha Internacional, visita o navio, recusando 
abandoná-lo sem que as autoridades sul-africanas, de novo, vejam as 
condições sub-humanas em que se vive a bordo.
Ao
 fim da manhã, vislumbram-se as primeiras traineiras que partiram de 
Porto Alexandre, e o arrastão  «Rio Vouga», trazendo, sabe-se agora, a 
totalidade das populações de Moçâmedes e Porto Alexandre. Pelos 
comunicados das traineiras, via rádio, sabe-se que a traineira «Sagres» 
 foi abandonada na viagem por se ter deflagrado incêndio a bordo, tendo 
todos os ocupantes sido recolhidos por outros barcos.
 
A
 bordo de uma das traineiras uma parturiente deu à luz uma criança. O 
operador do rádio de bordo solicita ajuda, em forma de injecções, 
seringas, e antibióticos, e a presença de alguém com conhecimentos 
médicos,  que possa ajudar naquela emergência.
A
 rádio sul-africana é escutada na sua emissão em português e deu 
notícias da nossa aventura. Ouvimos, estupefactos, que o «Silver Sky», o
 nosso navio, tinha sido tomado à força, pela população armada e que a 
tripulação tinha conseguido dominar a situação. Outra fantasia de quem 
forjou a notícia, a seu modo, com fins especulativos.
Ao
 fim da noite um rebocador traz-nos alimentos, parte dos quais são 
imediatamente cozinhados. Seis doentes são evacuados, por carecerem de 
assistência médica  urgente.
 
Cabe
 aqui uma referência para o facto de haver já tantas pessoas a 
precisarem de assistência médica urgente. É que, apesar das condições 
péssimas de subsistência, havia a bordo muitos doentes que foram 
trazidos do hospital da cidade, por familiares e amigos que não queriam 
que eles lá ficassem, não só por a assistência que lhes era ministrada 
ser praticamente nula, mas também pela falta de médicos, enfermeiros e 
medicamentos.
Surgem as 
primeiras notícias oficiais sobre a nossa situação, pela voz do Felício,
 nosso único dialogante nas conversações com os sul africanos. As 
autoridades sul-africanas recusaram-se a aceitar-nos.  O comandante do 
navio, médicos, e o comandante do porto intercedem pela prestação 
urgente de assistência em terra, tendo este último, numa posição de 
força, ameaçado autorizar a atracação do navio e pedir de imediato a 
demissão do cargo.
Esta 
atitude do Comandante do Porto de Welvys Bay calou bem fundo entre nós, 
apesar da profunda decepção que de nós se apossou, ao constatarmos a 
realidade nua e crua dos factos: as autoridades sul-africanas não nos 
querem no seu país, e a sua apregoada solidariedade para com o povo 
angolano, resume-se, egoisticamente, em colocar um travão no próprio 
território angolano, à expansão do comunismo na África meridional.
Soube-se,
 entretanto, que amanhã de manhã, as traineiras virão juntar-se ao 
«Silver Sky», como companheiros de infortúnio e parceiros de desdita, 
nesta aventura de que não se vislumbra o fim imediato.
Sentir-nos-emos,
 de certo, mais confortados pois na parte que me toca, fiquei a saber, 
pela escuta dos rádios das traineiras, que na «Maria João» vem lá o meu 
irmão Abel, e na traineira «Maria Helena»,  dos meus tios Neca, Zé 
Marques e Zé Camanhai, vêm as suas familias e a minha avó Catarina.
14 de Janeiro de 1976. 4ª feira
O
 navio continua ancorado ao largo, sem permissão para entrar no porto, 
agora já acompanhado das traineiras surtas de Porto Alexandre.
A
 vida a bordo continua cada vez mais monótona. As horas arrastam-se 
dolentemente.  Os noticiários são ouvidos com avidez. Consta que 
Benguela e o Lobito foram alvo de intensa metralha da aviação, mas não 
se sabe que Movimento ocupa aquelas cidades.
 
Moçâmedes e Porto Alexandre são tristes palcos de sangrentos combates onde a UNITA parece levar vantagem.
Sabe-se
 do esperado fracasso da reunião da OUA sobre Angola e da determinação 
do governo cubano em continuar a enviar «observadores militares» e 
armamento com destino ao MPLA, apesar do novo cessar fogo acordado entre
 os três deligerantes.
Estas
 notícias, apesar de nos entristecerem por dilacerarem ainda mais o 
marterizado povo angolano, em nada altera a firme decisão da quase 
totalidade dos brancos de seguirem para Portugal, em busca de paz e de 
trabalho, e de irem ao encontro dos seus familiares que os precederam.
Esta
 convicção domina também a maioria dos negros e mestiços, pois Angola, 
para eles, não é mais que miséria, tristeza, caos, e a própria vida a 
perigar, momento a momento.
Por
 sugestão das autoridades sul-africanas, fez-se uma relação da 
identidade de cada um, com a menção da nacionalidade que deseja optar.  
Esta questão da opção da nacionalidade foi origem de longa controvérsia e
 foi tema obrigatório em todas as conversas.
Escolha
 de nacionalidade? Quem me quer como cidadão? Quem pode ser cidadão 
angolano, e português? Será que passarei a ser apátrida, apenas por ter 
cometido o «crime» de ter nascido em Angola, de pais brancos, ambos 
naturais de Portugal? E a minha mulher, branca, de mãe angolana e pai 
algarvio? E os meus filhos, naturais de Angola, assim como nós?
Tantas interrogações e nenhuma resposta.
15 de Janeiro de 1976. 5ª feira
Confirma-se
 ser  de 1600 o número de refugiados no navio, pois ontem, após terem 
chegado os víveres, fez-se, já noite dentro,  distribuição da única 
refeição do dia composta de uma sande e de um copo de leite, 
aproveitando-se a oportunidade para se fazer uma contagem que merecesse 
crédito.
 Procedendo à limpesa do navio. Amélia Maia à esq. Foto protegida pelas leis de Copyrig
ht
 
Hoje,
 o Felicio apelou para a compreensão de todos no sentido de procederem à
 limpeza e higiene do navio, especialmente do porão, onde dorme a 
maioria das pessoas, tendo aquele espaço sido dividido em seis sectores e
 nomeados os respectivos responsáveis pela limpeza e asseio.
 
Registou-se
 um caso insólito que nos encheu a todos de alegria.  Cerca das 09 horas
 da manhã, uma  senhora deu à luz uma menina, tendo sido assistida pelo 
enfermeiro Milagre, de circunstância e de apelido.
Ontem, a equipe médica observou cerca de 30 doentes, considerados mais graves, ficando os outros para nova visita.
Fuga no Silver Sky.Limpeza a bordo. Foto protegida pelas leis de Copyright
Da
 parte da tarde soube-se que a nossa odisseia era conhecida do mundo 
inteiro, tendo apenas os governos da Suécia, Chipre, e a Organização das
 Nações Americanas intercedido junto do Governo da África do Sul para 
urgentre resolução deste caso.
 
A
 população de Welvys Bay está solidária connosco tendo-se conhecimento 
de manifestações cívicas de protesto contra  atitude do seu Governo em 
não ter permitido ainda a entrada dos refugiados angolanos no seu 
território. As autoridades locais apenas se prontificaram a melhorarem 
as nossas condições de vida, enquanto se aguarda pela definição do nosso
 destino.
Da parte da 
tarde, o Consulado de Portugal em Windoek iniciou a identificação de 
toda a comunidade embarcada, dando relevo especial à  existência da 
nossa ascendência portuguesa, até à terceira geração, facto que nos 
levou a cogitar, de que muitos angolanos, especialmente os de raça 
negra,  não deveriam ser evacuados para Portugal.
A
 nosso pedido, o Consul recebeu os empregados do Banco de Angola,  todos
 da Agência de Moçâmedes, que lhe solicitaram que, através da Embaixada 
portuguesa, fosse dado a conhecer à sede do Banco em Lisboa, a nossa 
situação, e o nosso desejo de sermos repatriados (para Portugal), o mais
 rapidamente possível.
Ao 
cair da tarde chegou a que supomos ser a última embarcação com 
refugiados a zarpar do porto  de Moçâmedes:  o rebocador «Rio Bengo».
Este
 barco fez-se ao largo no sábado, dia 10, mas regressou a Moçâmedes na 
segunda-feira seguinte, tendo sido alvo de fogo de morteiro que atingiu o
 navio e feriu várias pessoas.
Esta acção, por parte da
 UNITA, que parece agora dominar o extremo sul de Angola, dá-nos razão 
quanto à decisão de abandonarmos Angola, para salvarmos a pele.
Com
 efeito, os seguidores do Dr. Savimbi, na sua ânsia de extermínio 
racista, destruição e  morte de tudo quanto lembrasse a colonização, não
 poupariam nada nem ninguém que fosse branco ou mestiço.
Oxalá
 os anos vindouros não  nos venham dar razão quanto aos verdadeiros 
desígnios do Dr. Savimbi e seus seguidores, extremamente racistas e 
tribais. Não me posso esquecer das sessões de esclarecimento de Savimbi 
no Estadio Municipal da cidade, onde em português anunciava que os 
brancos eram necessários em Angola  para a construção de uma nova 
Pátria, e slogans semelhantes, e em «umbundu», acicatava instintos 
raciais, incitando  os negros a acabarem com os colonos que os dominavam
 há quasi 500 anos. Ele esquecia-se que haviam muitos brancos que 
dominavam aquele dialecto.
Era
 do dominio público que a UNITA tinha enviado uma mensagem através de 
medeireiros ao então Governador Geral de Angola, Coronel Rebocho Vaz, 
propondo-lhe auxiliar o Exército português a derrotar o MPLA, proposta 
que não mereceu crédito nem resposta.
16 de Janeiro de 1976. 6ª feira
Consta
 que o «Silver Sky», ainda ancorado em águas internacionais,  vai obter 
permissão para, finalmente, entrar no porto de Welvys Bay. Hoje, pela 
manhã, várias equipas de enfermeiros procederam à inoculação da vacina 
anti-tifoide, o que nos leva a pressupor de que iremos, ao fim de sete 
dias de cativeiro em mar alto, pôr pé em terra firme.
Esta
 perspectiva, deixa-nos simultaneamente eufóricos e apreensivos, por 
finalmente a nossa situação começar a aclarar-se, perdurando a dúvida se
 no bom ou no mau sentido.
17 de Janeiro de 1976. Sábado
Faz
 hoje oito dias que nos encontramos a bordo. A Cruz Vermelha fez 
finalmente a sua aparição, tendo evacuado mais quatro doentes que 
careciam de tratamento médico urgente.
Consta que são esperadas aqui, em Welvys Bay, mais 34 traineiras do Lobito e Benguela também com refugiados a bordo.
Vários
 angolanos, já radicados em diversas cidades sul africanas, vieram de 
barco visitar-nos, sem lhes ter sido dada a permissão para entrarem no 
navio. Por eles ficámos a saber da sorte de outros familiares e amigos 
que ficaram no Namibe/Moçâmedes e Tombwa/Porto Alexandre. Boas notícias 
para uns, incertezas que continuam, para outros.
Devido
 à intercedência de familiares junto das autoridades locais, doze 
pessoas, portadoras de passagens aéreas já compradas para Lisboa, foram 
autorizadas a abandonarem o navio. Para esses, num mar de abraços e 
recomendações, a odisseia terminou.
Continuou
 a chegar mantimentos em grande profusão, o que,  paradoxalmente, é mau 
pronúncio, pois de cada vez que vemos chegar embarcações atulhadas de 
géneros alimentícios, é sinal de que a nossa permanência no navio 
continuará por mais algum tempo.
À noite um acontecimento agradável quebrou a monotonia e a sensaboria da nossa convivência comunitária.
Com
 a presença do Comandante do navio e esposa, improvisou-se um 
espectáculo de variedades a que não faltou orquestra, e que contou com 
saudosos valores dos palcos moçamedenses, como o Minas, Mário 
Figueiredo, Albertino e Raúl Gomes, a par das fifias dos caloiros, que a
 assistência magnanimamente aplaudiu. O improvisado. Serão terminou com 
uma desgarrada à boa maneira portuguesa.
18 de Janeiro de 1976. Domingo
Hoje
 pelas 10 horas da manhã, para os católicos,  houve o sagrado culto da 
missa. Convém referir que entre nós, há quatro padres católicos e 
algumas madres, que prestaram desvelados serviços de assistência aos 
mais carenciados, sacrificando, elas próprias, algumas comodidades e 
alimentos para benefício de velhos e crianças, como é próprio do seu 
apostolado.
Será tempo de 
se dar uma ideia das acomodações que temos no navio. O «Silver Sky» é um
 cargueiro grego que há 25 anos navega pelos sete mares. As suas 
instalações, nada famosas, apenas para os seus 38 tripulantes, passam a 
dar guarida , agora, a 1600 pessoas.
As poucas cabines foram disponibilizadas, pela tripulação para os mais idosos.
O
 resto, que era a maioria esmagadora das  pesssoas, disseminou-se pelos 
porões, tombadilho e convés, corredores, dormindo todos no chão e, nos 
primeiros dias, sem mantas nem agasalhos adequados às frias noites deste
 extremo meridional do continente africano.
A
 utilização dos mictórios das casas de banho era através de filas e 
depressa entupiam. O cheiro era insuportável, e de tal maneira o odor a 
amoníaco empestava o ambiente, que teve de se improvisar várias 
plataformas de madeira, na borda do navio, para servirem de sentinas, e 
escalar plantões, noite e dia, para verificar se cada utente procedia à 
sua respectiva limpeza depois de utilizadas.
A
 cozinha também não tinha condições para confeccionar refeições para 
todos. As panelas, de reduzido tamanho, tinham que ir ao fogo várias 
vezes e, havendo uma só refeição diária, a cozinha funcionava as 24 
horas por dia.
Por turnos, as mulheres eram escalalas 
para cozinheiras, e os homens para ajudantes, servindo-se, 
prioritariamente as crianças, os idosos e os  doentes, as mulheres, e 
por fim os homens.
Todas 
estas normas de disciplina comunitária eram acatadas sem controvérsia. 
As filas para as refeições, e aqui tudo se obtia formando filas, era 
outro espectáculo. Como não havia pratos, copos nem talheres, houve que 
improvisar, e tudo servia, ora como copos, ora como pratos e, após as 
refeições, eram guardados religiosamente, longe de olhares cobiçosos, 
como se das melhores porcelanas da Vista Alegre se tratasse.
A
 permuta de tudo quanto tivesse valor, era livre e feita em profusão. Na
 parte que que toca, achei vantajosa a troca com a senhora, que se 
acomodava ao meu lado, no porão, de um pedaço de sabão que não me fazia 
falta, por uma pequena almofada, que passei a utilizar como travesseiro.
No
 que concerne aos alimentos, consta que os géneros que diariamente nos 
trazem, desde que estamos ancorados, são oferta  do povo de Walvis Bay, 
cidadezinha onde se fixaram alguns portugueses e muitos angolanos, 
recentemente ali radicados, que se condoeram com a nossa situação, 
semelhante à que já haviam experimentado,  e como protesto contra a 
atitude do governo sul africano em não nos auxiliar com a devida 
presteza e eficiência.
19 de Janeiro. 2ª feira
E 
 de súbito, a boa nova. O Felicio reuniu toda a gente para comunicar que
 o navio iria atracar, mas que ninguém sairia de bordo, até ordens em 
contrário.
 
Passadas
 algumas horas, que mais pareciam uma eternidade, o navio pôs-se em 
marcha. Devidamente escoltado por dois rebocadores portuários, e por 
entre as saudações dos nossos companheiros das traineiras, o «Silver 
Sky» dirigiu-se lentamente para o porto da baía de Welvys Bay, onde, 
finalmente, atracou.
Depois
 do navio acostado, o Felicio chamou de novo toda a gente e, com voz 
repassada pela emoção, disse que nos ia deixar, por a viagem ter 
terminado, desejando-nos a todos boa sorte.
Aproveitámos
 a oportunidade para agradecermos calorosamente ao comandante do navio, 
sua esposa e tripulação e pedimos à autoridade ali presente para também 
transmitir ao povo de Welvys Bay todo o nosso agradecimento pelo auxilio
 prestado, e a simpatia e o sentimento humanitário com que acompanharam a
 nossa permanência ali perto.
Depois,
 foi a ansiedade que de todos se apossou, ao saber-se dos rumores de que
 cerca de 600 pessoas iriam sair já naquela manhã.
Fuga de Moçâmedes no Silver Sky :foto protegida pelas leis de Copyrignt
Os
 rumores confirmaram-se. Fui dos primeiros, escolhido para acompanhar o 
senhor Ervedosa, funcionário aposentado do Banco de Angola que nunca 
quiz sair de Moçâmedes, a descer a inclinada escada de saida do navio. 
Vesti-me a preceito, com o único fato que tinha, gravata emprestada, que
 não disfarçavam o aspecto desleixado que a barba e o cabelo comprido 
davam ao meu visual.
 
Ao 
descer as escadas, amparando o «velho Ervedosa», como carinhosamente o 
tratávamos, fui alvo das objectivas das câmaras fotográficas e de 
televisão, não por mim, obviamente, mas pelo ancião que acompanhava.
No
 cais, e a entrada para um comboio especial que nos iria levar a 
Windoek, capital do território,  a cerca de 280 Km, no interior, o  
final da nossa viagem, fosse ela qual fosse, estava agora mais perto.  
para além de algumas pessoas conhecidas ou de familiares e de elevado 
número de profissionais da informação (rádio, cinema, televisão), num 
eficiente serviço de recepção e de apoio prestado pela Cruz Vermelha 
Internacional (vacinas, refeições frias e rápidas, cigarros, roupas, 
objectos de higiene pessoal, etc). Tudo isto em fila ordenada por 
militares sul-africanos, que utilizaram para aquele efeito  tendas de 
campanha e as próprias instalações do porto, disponibilizadas para 
aquela eventualidade.
Cumpridas
 todas aquelas demoradas formalidades, e já dentro das carruagens do 
comboio que nos levaria a Windoek,  porque a partida se atrasara devido à
 morosidade da saída das 600 pessoas do navio, fomos obsequiados, 
através das janelas das carruagens, com chávenas de canja, sandes e 
bolos, oferecidos pelas senhoras portuguesas que, deste modo  também 
quizeram minorar as nossas necessidades imediatas. E que boa ajuda elas 
nos prestaram, especialmente aos nossos sacrificados estomagos.
Constou
 que os angolanos de raça negra e os que, portanto, não demonstraram 
possuir nos seus antepassados ascendência portuguesa até à terceira 
geração, foram conduzidos à fronteira, para regresso a Angola. 
Finalmente,
 cerca das 20 horas, o comboio dos refugiados angolanos pôs-se em marcha
 com destino à capital namibiana, nova etapa desta tragédia, que, nem 
mesmo em noite de pesadelo, nunca ninguém ousara sonhar viver.
20 de Janeiro   3ª feira
Cerca
 das 11 horas da manhã chegámos a Windhoek  e de imediato colocaram-nos 
em autocarros e encaminharam-nos para um «Campo de Apoio» dentro da 
cidade. Eram antigas e abandonadas instalações hospitalares, só com 
paredes e tectos sujos, sem as condições mínimas de decência e higiene 
para acomodar pessoas.
Distribuiram-nos
 duas mantas desintectadas, pelo cheiro que delas exalava, um sabonete, 
toalha, dois pratos, copo e talheres e desinfectante em pó para 
pulverizar as camas de ferro, com estrado de madeira, à guiza de 
colchão.
Depois de 
conhecermos os dormitórios, distribuiram a primeira refeição composta 
por duas fatias de pão escuro, nada saboroso, e duas sandes de conserva 
de atum e água.
Ali 
permanecemos o resto do dia. Começaram a chegar mais amigos mas o 
contacto com o exterior era à distância, pois o «Campo» era vedado com 
arame farpado, e agentes da polícia impediam, em termos violentos,  que 
de um lado ou do outro se chegasse à vedação.
Mesmo
 assim o meu tio Mário Martins, que tinha ido de automóvel para 
Windhoek  por motivos de saúde, apareceu na parte exterior do «Campo»,  e
 conseguimos, a muito custo conversar, gesticulando, sempre sob a 
vigilância atenta dos agentes sul-africanos.
Gostei muito de o ver, mas, infelizmente,  embora me tivesse perguntado, em nada me podia valer.
Como
 o «Campo» está praticamente dentro da cidade, fomos objecto de olhares 
curiosos de todos os passantes, sentimo-nos como feras ou animais 
exóticos expostos num Jardim Zoológico.
Por
 este cuidado todo, evitamos contactos com familiares que vivem em 
Windhoek e que nos visitaram, e logo depreendemos que resultariam 
infrutíferas quaisquer diligências em obtermos o «permit» para sairmos 
do «Campo».
Soubemos 
depois que os sul-africanos quizeram tirar dividendos politicos deste 
abandono total das cidades do sul de Angola às hordas assassinas dos 
guerrilheiros da UNITA, movimento que apoiam, tentando evitar que 
transmitissemos para o exterior a ideia de que tinha sido exactamente 
devido àquele Movimento que toda a gente abandonou Angola, no passado 
recente.
À noite, foi-me 
servida uma sande e uma chávena de café com leite, perfazendo 3 sandes e
 2 chávenas de café com leite, os únicos alimentos ingeridos hoje.
21 de Janeiro. 4ª feira
A
 parte da manhã foi dedicada à limpeza das instalações do «Campo», 
tendo-se procedido, para o efeito, à elaboração de escalas de turnos.  
Da parte da tarde foi finalmente anunciado que, no dia seguinte, iria 
ter início a ponte-aérea Windohek/Lisboa, com a saida de dois aviões, 
transportando cada um, 180 pessoas.
Como
 no «Campo» havia famílias  em que alguns elementos ainda se encontravam
 a bordo do navio, e como não desejassem desfazer o agregado familiar, 
foi ordenada nova fila, apenas para as pessoas que estavam prontas a 
partir.
Mais contactos à distância com pessoas amigas 
já residentes em Windhoek que, sabendo das nossas carências alimentares 
se apressaram em ir à cidade, trazendo-nos frutas, refrescos e sandes.
Enquanto
 a noite não chegava, foi a azáfama de refazer e acondicionar os nossos 
pertences (os meus couberam numa malinha verde de cartão, que guardarei 
como relíquia), tomar banho, barbear-nos, no propósito de tornear a 
apresentação pessoal de cada um, o melhor possível, para o reencontro 
com os nossos familiares em Portugal.
22 de Janeiro. 5ª feira
Dos
 2500 companheiros de infortúnio que, fraccionadamente deixaram 
Moçâmedes e Porto Alexandre no «Silver Sky», rebocador «Rio Bengo» e nas
 traineiras, 180 partiram no primeiro avião,  e mais 180 no segundo, que
 partiu duas horas depois.
O
 pequeno almoço estava marcado para as 9 horas, mas já às 4 horas da 
madrugada os mais impacientes estavam de pé. Quase que garanto que nesta
 última noite passada em Windhoek, e que era também a última noite em 
África, ninguém conseguiu dormir.
Devido
 à antecedência da nossa comparência, dejejuamos mais cedo, formamos 
fila, conferiram os nossos nomes,  e mais cedo partimos para o 
aeroporto, distante 42 km da cidade. Alí chegados, cerca das 9 horas, 
fomos conduzidos em fila indiana a umas instalações cercadas de arame 
farpado (estes sul-africanos ou têm excedentes de arames, ou suspeitam 
de tudo e de todos, até das suas próprias sombras).
Cerca
 das 14, 30 horas, ainda em fila, e, antecedido de nova chamada, 
dirigimo-nos para o Boeing 707 «Vera Cruz» da TAP, que deixou o 
aeroporto uma hora depois. Às 19 horas, o aparelho fez uma escala 
técnica em Abidjan, na Costa do Marfim, para reabastecimento, não nos 
tendo sido autorizado sair do avião.
Duas
 horas depois, deslocamos rumo a Lisboa, fim da nossa odisseia de fuga à
 guerra, de abandono forçado da Pátria que não nos quiz, mas com a 
garantia de continuarmos vivos e o propósito de nos sentirmos Homens 
úteis onde quer que sejamos acolhidos.
Talvez
 devido aos fusos horários ou à emoção da chegada, não sei se hoje foi 
ontem ou se amanhã é hoje. Não penso na incógnita e na incerteza do 
futuro, num país que embora conste do meu Bilhete de Identidade como 
sendo o meu, não sei se me acolherá como filho ou como enteado, com toda
 a carga de rejeição e repulsa que o termo, por vezes, contém.
Não
 penso em nada disso, nem me apercebo da azáfama do aeroporto de Lisboa,
 com pais à procura de filhos, esposas tentando lobrigar maridos, 
parentes à cata de familiares, curiosos na expectativa de abraçar ou 
rever amigos.
Reporteres 
da imprensa falada e escrita tentam transmitir para a posteridade a 
amálgama de sentimentos e emoções que se transmite num abraço, num 
beijo, numa carícia, até num aceno ou num olhar fugaz.
No
 seio desta babilónia, lá estava o IARN (Instituto de Apoio ao Retorno 
de Nacionais) a dirigir as pessoas, em mais filas, para a fotografia, 
para a identificação, para a entrega de documentos, alojamentos, etc.
E,
 repentinamente, cai nos braços do meu sogro que me aguardava há muitas 
horas na expectativa de que eu, o Pedro Rolão e familia estivessemos 
entre os que chegavam. Estava finda a odisseia da fuga da guerra que 
durou 13 dias.
Agora, era a
 emoção de rever a minha mulher e os meus filhos, 108 dias após a 
partida deles de Moçâmedes para Luanda, em 4 de Outubro de 1975.
Amanhã
 será outro dia para mim e para todos. Começará decerto uma outra 
epopeia pela sobrevivência, num pais com 700 mil desempregados, 
politicamente instável, economicamente débil,  socialmente conflituoso, 
onde o FUTURO se nos apresenta incerto, mas não apreensivo como o 
espectro da Guerra a que, decididamente, voltamos as costas.
«OS MESES NÃO SÃO LONGOS,
NEM OS DIAS, NEM AS NOITES.
LONGA SIM,  É A GUERRA »
Lisboa, Aeroporto da Portela de Sacavém, 22 de Janeiro de 1976.
(ass) Mário Augusto da Silva Lopes 
                                                                     
FIM
Gostaria de acrecentar  aqui que por esse tempo a bordo do Navio 
Silver Sky tudo 
era racionado e distribuído em matéria de víveres , pelo que era comum chamarem pelo nome do pai e número de filhos, A chamada um a um, era apenas  para aqueles  que viajavam sós, Mas havia ali  um passageiro muito  especial que aglutinava  em si  uma prole  de  nada menos que "19 filhos", era o bom Padre Dinis que levara consigo os garotos da Casa dos Rapazes de Moçâmedes.
 
Segue a lista (em elaboração) dos habitantes de Moçâmedes que abandonaram a cidade neste navio (a completar...)
Alberto dos Santos Ramos Neca
Albertina Rodrigues Martins Neca
Ahlers Alberto Martins Neca
Aguinaldo Matos (Banco de Angola) e genro   
Albertino Gomes
Amélia Maia
Angelo Nunes de Almeida e filho
Antonio Freitas
Antero de Quental
Artur Miranda Trindade e família
Carlos Quental
Correia (do talho)
Duarte Cardoso
Ervedosa
Fragata (3 elementos da familia) 
Felício
Gabriela Cardoso
Henrique Minas e familiares
Irmãs Doroteias do Colégios Nossa Senhora de Fátima 
Jaime Custódio (Banco de Angola), e sogro
José Manuel Paulo Nascimento (Mantela)
José Joyce Chalupa e Dina Chalupa
Josefina Cordeiro
Jorge Maló de Almeida
José Santos (Zeca) do Banco de Angola
Laurindo Pradanta Marques Couto
Licinio
Luis Alberto Colmonero
Luis Edmundo Cordeiro (trabalhava no porto de Moçamedes)
Linda e mãe
Luis Alberto de Noronha Cardoso (professor Ginástica ECM)
Maria Augusto da Silva Lopes
Manuel Azevedo Osório
Mário de Sousa
Manuel Virginio Azevedo do Nascimento , Celeste Custódio Nascimento, Celeste de Freitas Custódio 
Maria Manuela Seixas Cardoso
Mario Augusto da Silva Lopes 
Mário Figueiredo
Mena dos Correios
Odete Maló de Almeida
Osório (Banco de Angola)
Padre Pinto Lobo
Palmira Quental
Paulo Quental
Virgilio Nunes de Almeida
Padre Dinis Lopes e seus pupilos da Casa dos Rapazes de Moçâmedes
Luis Edmundo Cordeiro (trabalhava no porto de Moçamedes)
Ilma dos Santos Cordeiro,
Fatima Cordeiro
Filomena Cordeiro
Antonio Freitas
Josefina Cordeiro.
Raúl Gomes
Suzete Martins Neca
Continua.... 
Esta foto da familia Duarte, foi tirada dias antes de sairmos de Tombwa, em 10 de Janeiro 1976, disse Carlos Duarte.  Foto protegida por leis de Copyright.
 
10 de Janeiro de 1976. Impressionante foto da fuga das traineiras de Tombwa (ex Porto Alexandre), tirada à entrada na baía de Welvys Bay
AINDA O 10 DE JANEIRO DE 1976..
FUGA DE PORTO ALEXANDRE (actual TOMBWA)  
No
 mesmo 10 de Janeiro de 1976, para além da fuga no Silver Sky do 
último núcleo de europeus residentes em Moçâmedes, deu-se também a fuga 
daqueles que persistiram em ficar em Porto Alexandre (actual Tombwa), 
esta, através do único recurso ao seu alcance: TRAINEIRAS!  
O
 abandono precipitado deste pequeno núcleo ficou  a dever-se à notícia 
difundida pela rádio  Lubango, e retransmitida através dos microfones do 
Rádio Clube de Moçâmedes, avisando a população que a UNITA, militarmente 
reforçada, ia a caminho do Namibe para se vingar das matanças de 
guerrilheiros seus, efectuadas semanas antes pela  FNLA, e que não iria 
distinguir ninguém, considerando os brancos que alí ficaram seus 
inimigos. 
Estes
 alertas foram escutados pelas gentes de Porto Alexandre, a 100 km de 
distância de Moçâmedes, que, em pânico, e seguindo o exemplo do que se 
estava a passar na capital de distrito -onde a população europeia que 
restava, em pânico, refugiou-se a bordo do  navio cerealífero grego que 
se 
encontrava no cais, "Silver Sky"-  resolveram fazer-se ao mar a bordo das 
traineiras disponíveis, carregando consigo os haveres que conseguiram 
reunir, incluso alguns automóveis, nas traineiras de maior porte . Entre as várias traineiras iam as traineiras de 
Lourdino Tendinha, a "Nossa Senhora do Rosário" e a  "Navegantes" de 
Baptista. Por ora não temos os nomes de todas aquelas que se 
incorporaram nesta fuga.
Registamos sob o acrónimo MLIT, o testemunho de alguém que viveu este 
drama, que partiu de Angola, Tombwa (ex-Porto Alexandre) nesse 10 de Janeiro de 1976, rumo Welvys Bay (no Sudoeste 
Africano), para em seguida ser enviada de avião para Windhoek, onde tomou o avião para Portugal.   
Segundo MLIT, que fez 
parte do grupo da traineira "Navegantes",  num primeiro 
tempo ficaram a aguardar notícias em alto mar, porque o intuito 
inicial era o regresso a terra, quando a situação acalmasse. Porém as 
notícias escutadas pela rádio tardaram e quando estas chegaram não eram 
promissoras, e tiveram que prosseguir viagem para Welvys Bay. Valeu-lhes o facto de terem algumas das famílias mais 
precavidas arrecadado, em suas casas, alguns mantimentos que iam conseguindo 
arranjar, e que iam acomodando em caixas de cartão que levaram consigo 
(latas e conservas e outras latarias,  arroz, batatas, carne, peixe, 
massas, legumes, fruta, bolachas, bolos, bebidas etc.). Para trás 
ficaram todos os bens que haviam conseguido ao longo de uma longa vida 
de trabalho: casas, pescarias, lojas, mobiliário, electrodomésticos, 
automóveis, roupas, etc, incluso albuns de recordações. Fizeram uma paragem na Baía dos Tigres, onde foram a terra  com
 o intuito de arrecadar, no Hospital da povoação abandonada, algum 
material hospitalar que lhes pudesse ser útil (medicamentos, 
luvas, gazes, pensos, algodões, tesouras, alcool puro, água oxigenada, 
seringas, etc.), uma vez que numa das traineiras, "a Sial", viajava uma 
senhora grávida de 8 meses, tendo o marido conseguido o 
material e levado consigo uma embalagem de medicamento destinado a 
aceleração e indução do trabalho de parto. Uma previdência, pois 
já no alto mar, nessa mesma tarde, enquanto rumavam a Welvys Bay, a 
senhora  deu à luz uma menina, a quem foi dado o nome o nome do navio. Outros dizem que se chama  Sial Marina, porque o padre não aceitou o nome pretendido, mas sobre isso não 
temos certezas. 
Foi um inesperado nascimento a bordo, sem as mínimas 
condições asépticas, que se constituiu numa verdadeira odisseia vivida, 
sofrida e acompanhada de longe e de perto, pelos ocupantes do comboio de
 traineiras em fuga.  Da traineira onde viajava a parturiente 
tinham lançado apelos pela rádio para as outras traineiras a pedir ajuda
 de alguém entendido na matéria. Mas se por um lado, as senhoras que viajavam com a parturiente, dado o estado de enjoo em que se achavam, não podiam ajudar, o mar agitado também não permitia o transbordo da única enfermeira que viajava numa outra traineira,
 e o parto acabou assistido pelo próprio marido aflito, enquanto ia 
seguindo à risca orientações que durante toda a noite lhe iam sendo de 
longe ditadas, via rádio, de como haveria de proceder em relação ao 
corte do cordão umbilical, a partir de quantos cm. deveria este ser 
feito, o desinfectamento do fio a utilizar, etc. etc.
Ainda segundo MLIT, chegados a Welvys Bay,  em cuja baía já se encontrava já o "Silver Sky" que partira do Namibe (ex-Moçâmedes), navio e traineiras ficaram a aguardar a ordem de desembarque dos passageiros durante
 cerca de 15 dias, até qe finalmente chegou a autorização das 
autoridades sul-africanas. Foi um tempo de espera desgastante, em  que 
tiveram que suportar toda a série de privações de uma viajem sem as 
condições mínimas exigidas, que sequer lhes permitiam levar a cabo os actos mais elementares de higiene. Também, segundo 
MLIT, no dia em que o Cônsul português foi visitar as traineiras, 
algumas senhoras, com os poucos mantimentos que restavam, 
fizeram um almoço que ele partilhou. 
Quanto ao destino a dar às gentes de Porto Alexndre, a Embaixada na África do Sul que tinha 
tomado o assunto em mãos, encaminhou-as 
para campos de refugiados, mas estas só aceitaram embarcar para Portugal quando 
lhes foi garantido pelas autoridades portuguesas, à chegada, o devido 
alojamento em Hotéis. Quanto ao resto dos trâmites, estes foram 
idênticos ao acontecidos em relação aos fugitivos no Silver Sky, acima 
relatados.
Mas segundo MLIT, também houve em Tombwa, quem tivesse desistido da fuga e optado, à última hora, por ficar: os Marques. Na tentativa de levarem também consigo para Welvys Bay, a sua traineira, que se encontrava a ser reparada num dos estaleiros da pequena cidade, esta familia ficou
 juntamente com com uma outra familia, cujo marido e pai  trabalhavam na
 
dita traineira. Com a chegada da UNITA  a Tombwa (Porto Alexandre) e com
 a fuga da FNLA,  muitos dos residentes acabaram por ser feitos 
prisioneiros, outros mortos, porém os Marques e a familia que os 
acompanhou foram poupados, pois  a UNITA fizera deles uma espécie  de 
"reféns", para o que desse e viesse. E de 
facto só viriam a ser soltos quando os guerrilheiros deste movimento, 
sabendo da notícias da chegada do MPLA, dois meses mais tarde, em Março 
de 1976, se puseram em fuga. A verdade é que necessitaram deles e da sua
 traineira para 
poderem escaparem, rumo a Welvys Bay, de onde os Marques  e 
acompanhantes 
seguiram, por via aérea,  para Portugal, enquanto os ditos guerilheiros 
foram recambiados para a fronteira com Angola, como era procedimento 
comum com relação aos africanos.
OUTRO TESTEMUNHO:
Ainda
 acerca os dramáticos momentos que antecederam a fuga da cidade do 
Namibe no "Silver Sky", a 10 de Janeiro de 1976,  importa referir que, 
segundo alguns testemunhos, este navio cargueiro 
estava como que apresado no porto de Moçâmedes
 porque a FNLA (o movimento que então  detinha o controlo da cidade,  
após a fuga do MPLA, e os desmandos que se seguiram com a UNITA),  não 
permitia que dalí saísse, fazendo dele o último reduto, o local para 
onde os seus guerrilheiros, dirigentes, simpatizantes e não só, se 
podiam refugiar, no caso de invasão da cidade pelos outros movimentos, como sseria o caso do regresso do MPLA, ou da UNITA, o 
que na verdade  veio a acontecer.
Segundo
 OMA (acrónimo com que designarei outra das fugitivas de Moçâmedes, no 
"Silver Sky"),  após a invasão dos sul africanos (em Outubro de 1975), e a
 fuga do MPLA, tinha ocorrido na cidade um
a chacina da FNLA que dizimou váriosguerrilheiros da UNITA,
 tendo os sobreviventes fugido para Sá-da-Bandeira 
(Lubango), onde ficaram a aguardar reforços vindos de Nova 
Lisboa (Huambo). Em Moçâmedes, à frente da FNLA (civil), 
nesse curto periodo em que este movimento dominou a cidade, 
encontrava-se um residente branco,  cujo nome 
OMA não foi capaz de lembrar, mas que joga com o que descreve Mário Lopes, portanto seria 
Felicio, Este nas vésperas da 
fuga realizou uma reunião no Palácio do Governador a fim de informar os residentes, sobretudo os brancos que persistiam em alí continuar, sobre o 
que se estava a passar e o grande risco que corriam se persistissem em alí continuar, uma vez que a UNITA se preparava para descer a 
Leba, para se vingar, e que não iria distinguir ninguém, tomaria todos os brancos como inimigos. O dito representante civil da FNLA aconselhou a 
população branca para que, independentemente das suas inclinações, se 
refugiasse no "Silver Sky", que não tivessem medo  que o navio estava 
ali para os proteger a eles (FNLA), e aos que estivessem em maior perigo. Surreal 
foi o facto de no "Silver Sky" se terem acolhido, entre outros, alguns 
brancos simpatizantes de cada um dos outros movimentos de libertação, a 
par de guerrilheiros e dirigentes  da FNLA... Alguém 
tentou uma 
explicação  para o facto, sugerindo que a FNLA, apoiada pelos EUA, 
potência capitalista e anti-comunista, encontrava-se infiltrada de 
elementos brancos de  direita e de extrema direita ,  alguns doa quais mercenários, e que estes, sendo brancos, 
protegiam os seus iguais de côr de pele,  ainda que de diferentes ideologias. 
Aliás, corria a ideia de que a
 FNLA, no sul, apresentava 2 tipos de  exército, um deles constituido por 
africanos, comandado por um africano, outro constituido por europeus, 
comandado por um europeu, e ambos se encontravam sob o comando superior de um europeu. 
De facto o que se torna dificilmente digerível é o facto de brancos se 
associarem a um movimento conotado com a anterior UPA, a
 dos massacres, em 15 de Março de 1961, no norte de Angola, acto que o próprio
 Holden Roberto mais tarde, ao ser entrevistado, cinicamente lamentou. Continuemos o testemunho de O
MA.
Segundo OMA, quando
 na cidade de Moçâmedes soaram as sirenes, e através de altifalantes  se avisava se a 
população, em alvoroço, para que se reunisse e se refugiasse naquele 
navio que representava a salvação possível,  uns encontravam-se  em suas casas, outros estavam
envolvidos na labuta do dia a dia, muitas crianças estavam no interior do Colégio de Nossa Senhora de Fátima ao cuidado das Madres, outros achavam-se na praia... Muitas familias desconheciam o 
paradeiro dos seus elementos...  OMA não quiz partir sem levar 
consigo para o "Silver Sky", os padres que ainda se encontravam na 
cidade, as madres que se encontravam  a dar aulas no Colégio, bem assim como 
deixar 
entregues aos pais as suas criaças,  que as madres haviam levado  para a
 capela do mesmo colégio,  pondo-as a cantar, para as distrair e assim evitar o pânico. OMA 
sentia em si o peso dessa responsabilidade, mas 
sentia-se impotente perante o desenrolar dos acontecimentos.
Dias
 antes  OMA tinha recebido um apelo do enfermeiro Franco, o único elemento 
ligado aos cuidados de saúde, que ainda permanecia no Hospital de Moçâmedes, a dar 
assistência aos doentes.  Franco pediu ajuda
 a OMA, tal 
como haviam feito outras pessoas desesperadas, porque achavam que talvez
 ainda
se  podesse  conseguir, por seu intermédio,  algum milagre, através de um contacto com a Cruz Vermelha portuguesa. Quando OMA chegou ao Hospital e empurrou a porta da 
enfermaria, deparou-se com um quadro desolador: o enfermeiro caido sobre uma cadeira, sem se poder erguer.  Se o enfermeiro Franco eera já de si 
aleijado de uma perna, ao cair, tinha fracturado a outra, e estava 
completamente imobilizado e 
 sem saber o que fazer. Ao lado, nas filas de camas  cobertas de lençóis
 encardidos, erguiam-se na direcção de OMA  braços de doentes moribundos, negros, brancos e mestiços, 
gente idosa e gente de mais e de menos idade, todos pedindo socorro, 
alimento, e tratamento. Um cenário aterrorizador.   Os doentes não tinham que comer, a dispenseira
 do Hospital de Moçâmedes tinha fugido, bem como a 
maior parte do pessoal que alí trabalhava. Dar alimento àquela gente 
seria a primeira medida a tomar, e OMA meteu maõs à obra, entrou em 
contacto com outras senhoras da comunidade branca que ainda restavam na cidade, que se prontificaram a ajudar, cedendo parte dos alimentos que, em face 
da situação, haviam arrecadado (arroz, massas, etc), retirando de 
seus frigoríficos legumes, peixe e carne, etc., confeccionando  enormes panelas de sopa, que ao fim dessa mesma tarde deram 
entrada naquele Hospital para alimentar toda aquela gente esfomeada.  Depois
 foi o pânico, a fuga... As pessoas dispersaram-se num "salve-se quem puder" e só se encontraram já no cais ou no interior do "Silver Sky". 
Muitos doentes ficaram no Hospital e nunca mais ninguém soube deles.
E
 porque já não existiam malas à venda, nem madeira disponível para caixas e 
caixotes, o recurso foram as trouxas de roupa que, amarradas 
com fios, eram içadas do cais para o navio, e transmitiam ao observador atento, um
 espectáculo dramático e deprimente.
OMA contou-me que o seu filho mais novo era 
simpatizante do MPLA, e que, desgraçadamente nesse dia ela pôde se aperceber, do cimo do "Silver Sky", que no cais  um residente branco de Moçâmedes, pessoa bastante conhecida e que alinhava ao lado da FNLA,  estava a  persuadir um militante negro da FNLA,  que de arma em punho, se encontrava à entrada do navio, a não o deixar embarcar.  O 
filho viajou no "Silver Sky" porque OMA,  
tomada de um pânico aterrador, desceu as escadas do navio e foi
 buscá-lo.
 
Também segundo OMA, quanto os 
guerrilheiros da UNITA chegaram à cidade, e dirigiram-se para o  cais, 
já o navio tinha levantado ferro, como vingança  incendiaram os 
caixotes que  aguardavam o embarque no cais. Correu também a notícia que chegaram a 
metralhar na direcção do navio, julgando poder atingi-lo. (esta notícias
 carece de confirmação, pelo que se apela a quem tenha vivido este 
drama, e que a leia, que a confirme ou não).
O
 abandono precipitado deste pequeno núcleo ficou  a dever-se como já foi dito atrás, à notícia 
difundida pela rádio  Lubango e retransmitida através dos microfones do 
Rádio Clube de Moçâmedes, avisando a população que a UNITA , militarmente 
reforçada, ia a caminho do Namibe, para se vingar das matanças de 
guerrilheiros seus, efectuadas semanas antes pela  FNLA, e que não iria 
distinguir ninguém, considerando os brancos que alí ficaram como seus 
inimigos. A ideia não era, pois, a de abandonar a cidade. A 
promessa era de que o navio se afastaria para o alto mar, onde 
permaneceria, até que em terra a situação acalmasse. O
 navio acabou por prosseguir viagem porque estava ali gente da FNLA que 
tinha que partir, pois sabia-se que na Angola independente o MPLA não 
tardaria a tomar de novo a cidade, o que aconteceu algum tempo depois. A 
ordem para prosseguir viagem para Welvys Bay deixou toda aquela
 gente 
arrasada. A maioria amava Angola, independentemente do partido que 
ficasse a governar.
Disse também OMA que à chegada a Welvys Bay o navio não teve 
ordem para atracar ao cais, e ficou ao largo, na baía, até que fossem 
resolvidas todas as formalidades. Correu então entre os fugitivos a 
notícia de que só os brancos iriam ter ordem para desembarcar, e que 
todos os não brancos seriam recambiados para Angola, o que deixou  todos em polvorosa, exigindo a presença do Consul de Portugal, até porque em Angola não havia  apartheid, tendo 
os elementos brancos se negado, em bloco, nestas circunstâncias, a desembarcar.
Seguem
 alguns nomes daqueles que integraram este comboio de traineiras que 
partiu de Porto Alexandre (Tombwa), a 10 de Janeiro de 1976, aos quais esperamos poder acrescentar muitos mais:
-Albérico de Sampaio Nunes e Ermelinda do Carmo Tendinha de Sampaio Nunes
-Maria de Lourdes Ilha Tendinha e Januário Tendinha (traineira Navegantes)
-Lourdino
 Tendinha (Presidente da Câmara Municipal de Porto Alexandre) e esposa e
 filhos, Eduardo Sena Tendinha, Lourdino Sena Tendinha e Humberto Sena 
Tendinha
-João Faustino (Cunca),  mulher e filho
-Rogério de Sousa e Glady's de Sampaio Nunes e Sousa
Mena (filha adoptiva de Lurdes Tendinha) e sogros  (Traineira Navegantes)
(aguardam-se novos nomes)
E
 assim chegou ao fim aquilo que ficará" na História como uma autêntica 
"limpeza étnica"!   Uma nova ordem mundial divisava-se no horizonte...
Como diria o grande Miguel Torga:
 
"
Fomos
 descobrir o mundo em caravelas e regressámos em traineiras. A 
fanfarronice de uns, a incapacidade de outros e a irresponsabilidade de 
todos deu este resultado: o fim sem grandeza de uma grande aventura. 
Metade de Portugal a ser o remorso da outra metade."