O velho navio cargueiro grego «Silver Sky» encimado pela foto de um dos refugiados,
Carlos
José, da Casa dos Rapazes de Moçâmedes (Namibe). Carlos José ao ter conhecimento deste blog enviou-me por mensagem esta foto. Tive notícia,
que voltou para Luanda, onde acabou seus dias, lamentavelmente assassinado. Portanto isso aconteceu nos últimos 3 anos.
A FUGA NO «SILVER SKY» em 10 de Janeiro de 1976
Mário
Lopes viveu o auge do processo revolucionário em curso (PREC),
desenrolado em 1975, tanto na Metrópole como em Angola. Tal como na
Metrópole, mas pior que na Metrópole, também em Angola, com os
movimentos de libertação instalados em Luanda, o ambiente revolucionário
ia permitindo toda uma série abusos, ocupações, etc, mesmo de
propriedades ganhas com o suor do rosto.
No
final da licença graciosa que estava a gozar na Metrópole, em Agosto
de 1975, Mário Lopes ousou com a família regressar a Moçâmedes, a sua
terra natal, para ali se radicar definitivamente. Na sua terra natal
assistiu às cerimónias da independência de Angola, suportou privações e
perigos de toda a ordem, sempre insistindo em não voltar para
Portugal.Os movimentos bombardeavam-se de delegação para delegação, e a
tropa
portuguesa assistia passivamente ao decair da situação, enquanto o som
mais audível por todas as cidades e vilas de Angola era o martelar de
caixotes. No dia 10 de Janeiro de 1976 já não dava para suportar mais...
A
fuga deu-se no «Silver Sky», o navio cargueiro grego, que nesse dia
deixou a cidade de Moçâmedes, rumo a Welvys Bay, levando consigo
mais de 1600 pessoas a bordo, entre brancos pretos e mestiços, homens
e mulheres, crianças e velhos, comprimidas no convés e nos
porões... Partilhavam a comida, o agasalho e a angústia no porvir, longe
de se aperceberem que aquela viagem marcava o fim da presença em
terras do Namibe de quantos naquele navio viajavam, e que de forma
abrupta se viram obrigados a abandonar o seu torrão-natal.
A ideia era o afastamento temporário para o alto mar à espera que a situação acalmasse. Foi a salvação possível.
No capítulo «Diário de bordo», do seu livro O LADO ESCURO DA LUA,
Mário Lopes narra as vicissitudes passadas no bojo daquele navio, e o
drama pungente daquele milhar e meio de pessoas que deixaram Moçâmedes,
com destino a parte nenhuma, gente fugida da guerra, que buscava
noutro local, em outro qualquer país, a segurança física, único bem que
transportavam, sem perderem a esperança de voltarem a Angola, tão
depressa quanto a horda assassina e a loucura irracional dos homens o
permitisse.
Tal não aconteceu!
«...Enquanto
o «Silver Sky» se afastava das águas da baía, no espaço angolano
grassava uma autêntica hecatombe, com milhares de homens, mulheres e
crianças mortos e estropiados, cidades e vilas totalmente destruidas,
fome, doenças, guerra... Essa era a imagem de Angola que perdurou
décadas após a independência, prova evidente da incapacidade de
Portugal descolonizar, e da irresponsabilidade ambiciosa das grandes
potências que, atirando mais achas para a fogueira, vieram dar uma
dimensão internacional ao conflito.Seria tempo de se desmascarar os
senhores da guerra, as potências internacionais que estiveram por
detrás do genocídio do povo angolano, e todos quantos, sem deitaram um
pingo do suor do seu rosto por Angola, contribuiram para fazer daquela
terra rica, um dos países mais pobres do mundo. A descrição que se
segue é a dessa viagem de retorno às origens, ou seja, a da minha viagem
de regresso a Portugal, iniciada no «Silver Sky», narrada dia a dia,
bem assim como dos meses que a antecederam, sem esquecer a saga
colonizadora e povoadora dos portugueses em terras do Namibe, de forma
tão genuína quanto foi vivida, tão autêntica quanto me foi contada, ou
quanto os documentos da época o atestam, uma herança para os
vindouros, para que conste no correr eterno do tempo.»
A DANÇA DOS MOVIMENTOS EM MOÇÂMEDES E OS ACONTECIMENTOS MAIS IMPORTANTE
Após
o meu regresso a Angola, em Agosto de 1975, depois de gozados quatro
meses de licença graciosa em Portugal, concedidas pelo Banco de Angola, a
entidade patronal, deparou-se-me um quadro verdadeiramente dantesco,
no que respeita à situação do terrritório.
Ainda
no avião que me transportou e à minha família, de Lisboa para Luanda,
constatei estupefacto, e com muita apreensão, que a única mulher que ia
no avião, e as únicas crianças, eram as minhas.
No aeroporto.
No
aeroporto «Craveiro Lopes», em Luanda, era o caos e o pandemónio.
Saltitava-se por entre bagagens, pessoas, lixo e confusão. A ponte
aérea Luanda /Lisboa para evacuação de «retornados» atingia o seu
climax.
Táxis eram inexistentes. Os hotéis estavam superlotados, não garantindo nem água, nem refeições.
Aguardei
uma semana, com adiamento todos os dias, pelo avião da carreira da
«DTA» que nos transportasse de Luanda para Moçâmedes.
No cais de Moçâmedes à espera para embarcar... Foto protegida pelas leis de Copyright
Chegados
a Moçâmedes, onde nos aguardava o meu sogro Aníbal, demo-nos conta que
o pandemónio que tínhamos vivido em Luanda, tinha ali continuidade.
Afinal, acabávamos de fazer o trajecto ao inverso do que toda a gente
fazia em loucura colectiva. A debandada das pessoas estava no auge do
frenesim. Fomos tidos em Luanda como em Moçâmedes, e, decerto, como
seríamos em toda a parte, como seres absolutamente espaciais ou vindos
das profundezas da loucura e do irreal.
Na
nossa casa, logo na noite da chegada, fomos brindados com o tiroteio
intenso que grassava na cidade, como se duma sessão tétrica de boas
vindas se tratasse.
Logo ali decidimos que na primeira
oportunidade a minha mulher e as crianças iriam engrossar o imenso
caudal da mole humana que, de hora a hora, por terra, pelo mar ou de
avião, deixava Angola. O intuito era o de regressar quando tudo
estivesse mais calmo.
O
que se relata a seguir, é a cronologia da minha perspectiva do
acontecido, primeiro em Moçâmedes, em seguida no Namibe, desde a minha
chegada, até à partida para Walvys Bay, a bordo do «Silver Sky»,
alertando-se, desde já, que o realce dado a alguns eventos são da minha
responsabilidade, poderão não ter tido, no contexto da guerra civil
angolana, o impacto aqui realçado. Outros acontecimentos, decerto
relevantes, não terão o destaque e a menção que plenamente se
justificaria.
23 de Agosto de 1975
Após
luta renhida, o MPLA desaloja de Moçâmedes, a coligação UNITA/FNLA, que
se rende cerca das 19 horas, e passa a controlar a cidade.
28 de Agosto de 1975
Partiu
hoje do porto de Moçâmedes, rumo a Luanda, o navio «N'gola»,
transportando refugiados, para evacuação aérea com destino a Portugal.
04 de Outubro de 1975
O
dia mais triste da minha vida. Depois de muita hesitação, pesados
todos os condicionalismos que a difícil situação envolvia, resolveu-se
que não seria justo expormos a nossa família, mulheres e crianças, por
mais tempo, aos horrores da guerra. Cerca das 11 horas, malas feitas com
o que o imprevisto e o imediatismo permitiam levar, a minha mulher,
nossos três filhos, minha mãe, sogra, avó Rosário, cunhada Luisa e seus
três filhos tomaram um barco de cabotage, cheio de refugiados, rumo a
Luanda, para ali apanharem a ponte aérea que os levaria a Portugal.
Após
o barco se perder no horizonte, ao regressar a casa, fiquei como que
petrificado, tolhido de comoção, coração apertado, ao contemplar os
quartos dos meus filhos. Naquele vazio, a minha mente povoou-se de
recordações, vendo a um canto, a cama do Paulo Sérgio, alí, um brinquedo
do Jorge, acolá, uma roupa do Mário, e toda a casa a recordar-me a
minha mulher. Toda esta emoção era ferida ainda mais pelo estigma de
não saber quando, e em que condições iria revê-los.
12 de Outubro de 1975
Hoje,
Domingo, deparei com a minha irmã Fátima, o Cabé, seu marido, dois
cunhados e tios, que chegaram de Sá da Bandeira, viajando de comboio.
Haviam fugido daquela cidade onde estiveram presos durante dias sempre
maltratados pelo MPLA. Traziam apenas a roupa que vestiam o corpo.
Desfez-se em lágrimas logo que me viu. Não consegui arranjar muita
roupa, porque as lojas estavam vazias e em minha casa não havia nada de
mulher para vestir.
Foto: fuga da Gabela. A Moçâmedes chegava gente vinda do interior de Angola, na busca de porto seguro...
Telefonei
para Porto Alexandre, ao meu irmão Jorge, que trouxe de lá, roupas
grossas e agasalhos obtidos nos «fardos». Conseguiram apanhar o navio
«Lobito» que partiu 4ª feira para Portugal, partiram absolutamante à
deriva, pois no caso deles, perseguidos e marcados para morrer, deixar
Angola, era sinónimo de sobrevivência.
Tropas do ELP/FNLA com o apoio de mercenários sul-africanos.
Do site: vitalvereador.wordpress.
Tanque Olifant sul africano capturado pelos cubanos
28 de Outubro de 1975
Manhã
cedo entraram em Moçâmedes, pela estrada de Sá da Bandeira, tropas do
ELP/FNLA com o apoio de mercenários sul-africanos brancos, alguns
portugueses de Angola e «mukankalas» comandados por um general
australiano. Foi a debandada do MPLA que, fugindo como ratazanas, foram
incendiando e destruindo o material de guerra que não conseguiram
transportar, deixando crianças e mucubais a resistirem aos invasores.
Houve muitas mortes de entre as quais uma muito sentida, a do nosso
amigo Mário «Chouriço».
A
tomada de Moçâmedes foi algo de espectacular, com tanques, camions de
apoio, infantaria, grande aparato bélico, progredindo pelas ruas da
cidade, palmo a palmo. Ao largo, na baía, submarinos estrategicamente
estacionados faziam regressar a Moçâmedes vários barcos que
trasportavam familias e guerrilheiros do MPLA que se escapavam para
Benguela.
Tropa disciplinada, não molestaram a
população civil, nem mesmo a simpatizante do MPLA, transmitindo-nos
forte dose de segurança.
As
hostilidades tinham começado na véspera, à tarde, tendo o Banco de
Angola por motivo de segurança das pessoas que lá se encontravam,
encerrado a Agência. Na impossibilidade de se circular pela cidade,
passámos essa noite, bancários e clientes, no segundo andar daquelas
instalações, reservadas aos Administrardores do Banco.
5 de Novembro de 1975
Após
muita indecisão que perdurou até ao último transporte, resolvi-me. O
meu carro, um «Autobianchi A-111», foi o último automóvel a embarcar
no navio «Lobito» para Portugal, e só foi conseguido por especial
deferência de uns amigos que superintendiam no carregamento. A bagagem,
contendo rancho e recheio de casa, num total 7 volumes, seguiu também
para Portugal a bordo do navio «Papacostas», último a sair de Moçâmedes,
devendo chegar a Lisboa a 18 deste mês.
Tive
imensas dificuldades em conseguir madeira para engradar a bagagem, pois
como me atrasei, os stocks dos armazéns de madeira, aliás, como todos
os outros, estavam esgotados. Como o barco estava prestes a zarpar,
contratei três carpinteiros e serventes que trabalharam dia e noite,
numa maratona contra o tempo, na feitura dos caixotes. Estes eram tão
grandes que não cabiam nas portas, pelo que tive que partir as paredes
do quintal da casa do vizinho para poderem ser carregados para a
camioneta.
11 de Novembro de 1975 (dia da Independência de Angola)
A
Independência. Data histórica para Portugal e para Angola. Noite
memorável para mim e para algumas centenas de portugueses e angolanos
que assistiram à efeméride com discursos de ocasião e festança que durou
pela madrugada dentro e durante todo o dia, feriado nacional, e que
culminou com o "Baile da Independência", no Estádio do Benfica.
De
conformidade com o acordado em Alvor entre os três Movimentos de
libertação e o governo português, Angola adquiria, em 11 de Novembro de
1975, o estatuto de estado soberano, com as inerentes implicações
políticas, sociais e diplomáticas que o acto exige. O que não tinha sido
previsto, e muito menos acordado, foi que, nesta data, o neófito país
estivesse envolvido em guerra civil, com os Movimentos a guerrearem-se e
a desrespeitarem o que tinham subscrito em Alvor, demonstrando o
governo português total incapacidade, como potência colonizante, para
dominar o estado de sítio.
A FNLA penetrando em Angola
pelo nordeste, avançou com alguma facilidade até ao Norte de Luanda
onde viu a seu caminho barrado na batalha de Kifangondo por forças do
MPLA apoiadas por um forte contingente de tropas cubanas, abandonou o
seu plano de chegar até Luanda, e despachou várias
das suas unidades para o centro e o sul de Angola onde acabaram por
concluir uma aliança com a UNITA.
Assim,
no dia 11 de Novembro de 1975 foi festejado em todo o território o
nascimento de uma nova Nação, mas dominada por forças antagónicas: A
FNLA/UNITA, os dois movimentos pró-capitalistas aliados, de Savimbi e
Holden Roberto, constituíram um "contra-governo" que teve o apoio do
então regime sul-africano e dos EUA que dominavam no norte, planalto
central e sul, com sede em Nova Lisboa,
proclamaram a independência no Ambriz e no Huambo, respectivamente, que
passa a designar-se República Democrática de Angola. O MPLA de
Agostinho Neto, de tendência pró-comunista, proclamou a independência
de Angola em Luanda, e passa a designar-se
por República Popular de Angola. Face à superioridade militar das forças
cubanas e do MPLA, apoiadas
pela União Soviética, a aliança FNLA & UNITA desfez-se no entanto
rapidamente.
Nesse contexto, às 00h00 do dia
Independência, quinhentos anos após Diogo Cão ter erguido o primeiro
padrão a assinalar a presença portuguesa por estas terras africanas,
os delegados da UNITA e da FNLA, arrearam a bandeira Lusa do mastro de
honra fronteiriço ao edifício do Governo Civil da cidade, depositando-a
no chão, hastearam as dos seus movimentos. O incrível ia
acontecendo. Um rafeiro que por alí deambulava tentou abocanhar a
bandeira arreada, no que foi impedido pelo Chefe do Posto, Pieter Van
der Kellen, que, na circunstância, representava o Governo português,
que a tomou em suas mãos, dobrou-a, e guardou-a.
Tinha
cessado, discretamente, sem a pompa nem o simbolismo que o
acontecimento justificava, a dominação portuguesa de quinhentos anos por
terras angolanas. Angola caminhava para a desintegração, e estava a
dois passos do caos completo e do apocalipse total. As confrontações
entre os Movimentos sucedem-se em todo o País, que, agora, passa a ter
uma constituição, dois presidentes, três exércitos e nenhuma
administração. Agora, livre da presença portuguesa, que, militarmente,
e nos últimos meses se mostrara inoperante, indecisa e timorata,
continuava, com mais fervor, sem trincheiras nem tréguas, o caos, a
confusão, o genocídio tribal e a luta sangrenta pelo poder e pelo mando.
Oxalá esteja profunda e redondamente enganado, mas ir-se-ão passar
anos, talvez décadas, até que o povo angolano obtenha a Paz e a
Tranquilidade que ambiciona e a que tem direito.
30 de Novembro de 1975
No
porto comercial da ex-Moçâmedes, agora cidade do Namibe, mãos
criminosas fizeram deflagrar violento incêndio nos contentores e
caixotes pertencentes a muitas pessoas que, à desfilada, tinham vindo
dos distritos do Huambo e da Huila, na expectativa de poderem embarcar
os seus haveres para Portugal. Muitos daqueles pertences estavam já
abandonados por seus proprietários terem partido para destino incerto,
confirmada que fora a impossibilidade seu transporte.
Caixotes no cais...
Chega
até nós os ecos do movimento político-militar ocorrido em 25 Novembro
em Portugal, que, sob a liderança militar do General Ramalho Eanes,
subtrairia ao Brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho, a preponderância
política que detinha no Estado português.
Portugal
havia estado, ao que parece, à beira de uma guerra civil, com um
governo fragilizado que não governava, as estruturas militares
politizadas e dependentes de grupos mais ou menos organizados, que
ambicionavam o poder a todo o custo, e o povo descrente, intoxicado e
manipulado por forças extremistas de esquerda que, após a queda do
general Vasco Gonçalves, em 28 de Setembro, se tinham apegado ao símbolo
que a figura prestigiada do General Otelo constituia, para prossecução
dos seus intentos ditatoriais.
02 de Dezembro de 1975
Feriado
nesta zona de Angola. Tomou posse o primeiro governo da República
Democrática de Angola, em Nova Lisboa, que o governo do MPLA em Luanda
apelida «fantoche», ignorando-o.
07 de Dezembro de 1975
Através
de um telegrama do meu cunhado Lisboa para o «Roçadas», acostado ao
porto, fiquei a saber que a minha família está bem. Recebi também uma
mensagem de um rádio amador de Sá da Bandeira dizendo-me que tinha
telefonado para a residência daquele meu cunhado, em Lisboa, e que
estavam todos bem.
27 Dezembro de 1975
A
UNITA bombardeia o navio «Guilherme Capelo» que entrou no porto do
Moçâmedes, autorizado pela FNLA para abastecer de combustível o navio
«Roçadas», acostado ao porto comercial. Face à essa impossibilidade, o
«Guilherme Capelo» fez-se ao mar.
28 de Dezembro de 1975
O
«Roçadas» pela calada da noite fez-se ao mar, não chegando a
descarregar a carga destinada ao Namibe, e que muita falta fazia por
conter bens essenciais como alimentos e medicamentos. Ficámos a partir
de agora sem um único meio de comunicação com o exterior, via rádio,
nomeadamente com Portugal, o que muito me entristeceu.
29 de Dezembro 1975
Na
sequência de profundas desavenças entre movimentos que se tinham
aliado e detinham o controle do distrito, estoirou a confrontação
armada entre eles.
Pelas 09h30 da manhã iniciou-se um
tiroteio nas ruas de Moçâmedes entre FNLA e UNITA, que durou até ao cair
da noite do dia seguinte. Ficámos todos no Banco, empregados e
clientes, e só às 19h30, no amainar da refrega, saimos,
dissimuladamente, para as nossas casas. Foram 22 horas de fuzilaria
intensa, com algumas baixas entre os beligerantes.
No
final do dia correm rumores de que a UNITA domina militarmente a
situação, estando a FNLA a aguardar a chegada de reforços provenientes
de Sá da Bandeira.
Cerca das 21H00, alegando motivos de segurança, o locutor Henrique Minas encerra a emissão do Rádio Clube de Moçâmedes.
Agora
é a FNLA que controla o sul de Angola e Nova Lisboa. A UNITA está em
Benguela e no Lobito, e nalgumas localidades a leste.
Cada
vez, a luta pela nossa permanência é mais dificil e penosa. Os
alimentos vão escasseando e a electricidade, que vem da barragem da
Matala foi cortada pela UNITA.
Torna-se impossível a fuga da cidade. Não há aviões, o «Roçadas» zarpou, e é perigoso andar pelo deserto, pois muitos «Unitas»
andam a monte e os «mucubais», armados pelo MPLA, duz-se que têm feito
grandes chacinas entre a população branca e negra das «concessões» no
Camucuio, Lola, Caitou e outras.
As
ruas estão desertas, A cidade de-Moçâmedes já não tem quase ninguém, e
os poucos que ainda cá estão, não saem à rua. A escuridão impera. O medo
tolhe. Os boatos proliferam e aumentam o desânino. Na casa onde moro,
sozinho, desejando o melhor mas adivinhando o pior, atirei
apressadamente algumas roupas para dentro de uma pequena mala de
viagem, na perspectiva de uma fuga rápida a acontecer durante a noite.
30 de Dezembro de 1975
Eram
7,30 horas. Dois Jeeps «Land-Rover» circulam pelas ruas da cidade,
dando vivas à FNLA. Os «Kuachas», derrotados, teriam cessado o tiroteio
refugiando-se, uns, no deserto, outros, na própria cidade, em casas e
quintais abandonados.
Às
9,30 o Rádio Clube divulga um comunicado da FNLA em que se alerta para
as pessoas regressarem às suas casas em virtude da situação não estar
completamente normalizada. Pede que médicos e paramédicos disponíveis se
dirijam ao Hospital para assistirem aos feridos e disponibilizarem
medicamentos que tenham em seu poder. É lido também um apelo dos CTT
para telefonistas regressarem aos postos de trabalho.
Mais tarde, pela 16,30 horas, já com os mais
curiosos a circular pela cidade, assiste-se à tomada do Posto
Adminstrativo de Santa Rita, nos subúrbios da cidade, onde se acoitavam
elementos da UNITA.
Continua a ouvir-se o tiroteio,
das acções de limpeza por parte da FNLA, que vasculha minuciosamente,
casas, quintais e residências de responsáveis e simpatizantes do "Galo
Negro".
Após a tomada da
cidade por tropas da FNLA, com o apoio ligístico e operacional dos do
exército regular sul africano, viveu-se uma certa acalmia.
As
tropas sul-africanas, disciplinadas, confinaram-se ao seu
aquartelamento, que foi do exército português, tendo, dias depois,
retirado para o sudoeste africano, ficando as estruturas civis da FNLA a
dominarem a cidade. Curto, porém, como se veria depois, foi este
período de sossego.
10 de Janeiro de 1975, Sábado
Pelas
10H30 surgem as primeiras notícias de que se travavam violentos
combates em Sá da Bandeira entre UNITA e FNLA para conquista da cidade
que estava de posse deste último Movimento, constando que as forças do
"Galo Negro" tinham já iniciado a marcha descendente, pela serra da
Leba, com destino a Moçâmedes e a Porto Alexandre.
Às
11H30, o Rádio Clube, ante a perspectiva da invasão da cidade por
forças da UNITA que estaria por horas, e face às notícias alarmantes que
se propalavam pela cidade, divulga um comunicado em que o delegado da
FNLA, reconhecendo a inferioridade de homens e de armamento, aconselha
calma à população e ordena que se dirijam todos para o porto comercial
ou para as instalações daquele Movimento, a fim de serem evacuados, de
barco ou de automóvel, protegidos por militares.
No
momento em que esta notícia era difundida, como funcionário do Banco
Angola, encontrava-me num armazém vistoriando mercadoria vinda de
Portugal, cuja documentação vinha à ordem e responsabilidade do Banco.
Como o importador tinha já abandonado Angola, a mercadoria que
integrava géneros alimenticios e vinhos, nunca seria desalfandegada,
correndo o risco de ser roubada ou de se deteriorar se o Banco não
tomasse medidas urgentes para o seu aproveitamento, tendo em
consideração a fase de carências de toda a ordem que se vivia. Dirigi-me
de imediato à nossa «messe», composta de amigos e colegas do Banco de
Angola, como o Custódio, o sogro, o Aquinaldo Matos e genro, o Osório, o
Zeca Santos, o Correia do talho, o Mena dos Correios, este, de grande
utilidade por conhecer a radiotegrafista do navio «Roçadas», e cujas
familias, tal como a minha, já se encontravam a recato em Portugal.
Após muita controvérsia, e de pesarmos bem os prós e os contras,
decidimos, unânimemente, com muita mágua, aproveitarmos esta
oportunidade para sairmos do Namibe. Estávamos cansados da guerra,
duvidávamos se a nossa teimosia em permanecer faria sentido,
reconhecíamos a nossa impotência para inverter fosse o que fosse, as
perspectivas de futuro eram nulas, angustiava-nos o paradeiro
desconhecido e a sorte das nossas familias em Portugal . Cada vez que um
movimento ocupava a cidade, era maior a sanha da destruição, vingança,
ódiio e morte.
Na compita pela
dominação das cidades, vilas e povoações, os três Movimentos que fizeram
a luta armada contra a presença de Portugal em Angola (MPLA, FNLA e
UNITA) degladiavam-se entre si, e, quando dominavam uma cidade ou
região, para além de exercerem despoticamente a soberania militar e
administrativa sobre elas, imputavam às populações simpatias pelos
movimentos que os precederam no domínio da cidade.
Para
identificação das pessoas afectas aos vencedores, foram concedidos
cartões de simpatizantes ou aderentes e como os três Movimentos se
revesavam ciclicamente, no controle e permanência nas localidades, era
normal a maioria das pessoas serem portadoras dos três ditos cartões de
identificação.
O controle das pessoas
no seu labutar quotidiano, era feito com muita insistência e invulgar
aparato bélico por patrulhas de soldados, especialmente em relação aos
individuos de que, ou se suspeitava com razão ou não de serem
simpatizantes de outro Movimento, ou por exercerem algum cargo cívico de
algum destaque, ou por serem brancos ou, simplesmente, por não haver
nenhuma razão.
Tinha que se ter o
extremo cuidado de termos sempre à mão o cartão certo do Movimento
certo. Quando se viajava, e como não se sabia qual o Movimento que
controlava determinada região do percurso, era quase uma lotaria
adivinhar-se qual o cartão que tínhamos que exibir, quando nos era
exigido. O meu Pai era camionista, e numa das viagens em que transitava
de Nova Lisboa para Moçâmedes assitiu, sem nada poder fazer, ao
espancamento brutal, até quase à morte, do ajudante do seu camion, só
por pertencer à raça «bailundo» que eram hostis aos agressores. Quando o
meu Pai, não se podendo conter, lhes solicitou que parassem com aquela
barbaridade, um dos agressores encostou-lhe a arma ao peito e retorquiu,
espumando de raiva: -"Cala-te branco de merda, se não acontece-te o mesmo!"
Certa vez na cidade, mandaram-me parar. -"Tem cartão, camarada?" Inquiriu o soldado. -"Tenho sim senhor". "É preciso mostrar?" retorqui, remexendo nos bolsos. -"Se tem cartão não precisa mostrar". Se não tivesse, é que era preciso. Saiu-se o militar, triunfante, dando-me ordem para avançar.
Nesta
fase da nossa permanência em Moçâmedes, como em toda a Angola, havia
gente a menos e automóveis a mais.A cidade de Moçâmedes era também
procurada por muita gente das cidades do interior que buscavam nos
portos comercial e mineraleiro, transporte para sí, familia, e bens. Na
impossibilidade de o conseguirem, estes eram deixados à guarda de um
amigo, de um familiar, ou simplesmente abandonados.
Os
automóveis circulavam até lhes faltar o combustível (só conseguido a
contrabando), quando se lhes adivinha uma «pane» irreparável, ou,
quando conduzidos por guerrilheiros embriagados, terminavam as loucas
correrias enfeixados na esquina de uma casa, ou num qualquer tronco de
árvore.
Num dia, manhã cedo, soldados
armados fizeram «alto» a uma carrinha que transportava dois individuos
brancos. O condutor fartou-se de gesticular, mas o veículo só parou
quando se espatifou contra um muro, o «chauffeur» morto por uma bala
que, atravessando o vidro de trás da cabine, lhe perfurou a nuca,
provocando morte instantânea. Verificou-se então que o infeliz condutor
não tinha obedecido à ordem de parar por o automóvel não ter travões.
Mais
dois incidentes de entre muitos de que fui testemunha, arreigaram em
mim a firme convicção de que era inviável a permanência branca nestas
paragens.
No primeiro, soldados super armados,
irromperam pela Agência do Banco de Angola, onde trabalhava, pretendendo
resgatar um cheque, passado à ordem da Delegação da UNITA. Como as
assinaturas não conferissem e face à negativa do pagamento do cheque,
exigiram de imediato o seu resgate, sob a ameaça de abrirem fogo e
destruirem tudo. O cheque foi-lhes pago, como é óbvio.
De
outra fez fui com o meu pai ao Cinema, numa noite em que tal ainda era
possível. No "hall" de entrada, um jovem soldado, ainda púbere,
impante de orgulho na sua farda de camuflado, levando a tiracolo uma
espingarda metralhadora, peito cruzado por munições, interpelou o meu
pai, pedindo-lhe um cigarro.
-"Não tenho, porque não fumo", disse o meu pai, calmamente.
-"Cabrão de branco, que nem sequer tem um cigarro para me dar",
ripostou o heroi, segurando firmemente na arma, à espera,
possivelmente, de reacção. Foi ouvir e calar. Pelo menos para mim,
Angola estava irremediavalmente perdida.
A
cidade estava completamente isolada do resto do território. Não havia
transportes porque faltavam combustíveis. Não se podia circular, por
falta de segurança. Estas duas situações inviabilizavam qualquer
intercâmbio entre cidades vizinhas. As comunicações via rádio não
funcionavam, como não funcionavam os Serviços básicos, Bancos, Hospital,
Organismos públicos e comércio. Todo o pulsar da vida comunitária
permanecia em mórbido estertor, e a única esperança de comunicação com o
exterior estava num cargueiro grego atracado ao porto, e que as
tropas, prudentemente, não deixavam zarpar. Não podíamos perder, como
não perdemos, esta última oportunidade de nos pormos a salvo.
Parti
de imediato à procura do meu pai e do meu cunhado Pedro, familiares
mais próximos, que sabia ainda estarem na cidade. Não consegui
contactar o meu pai, e o Pedro despreocupado, ignorando o que constava
pela cidade, estava na praia, desfrutando o prazer do sol do início do
Verão, não suspeitando de que naquele sábado o fazia pela última vez
na bonita e mítica Praia das Miragens, fronteiriça ao Casino.
Depois,
foi o emalar frenético do que estava à mão, o abandono precipitado das
casas, o aliciar dos mais renitentes em ficar, e o rumar apressado para o
porto, não sem uma única olhadela pela casa devoluta, pelo carro
abandonado, pelo amigo hesitante que fica, por tudo o que nos envolvia e
que foi, durante tantos anos, uma vivência plenamente vivida.
Cerca
das 18H00 horas, após se ter dirigido por duas vezes às pessoas
alojadas no «Silver Sky», navio de nacionalidade grega que se
encontrava aprisionado no porto do Moçâmedes, o Felício, funcionário da
Administração Civil, delegado da FNLA, de raça branca, visivelmente
comovido, falando pausadamente, disse:
«A
sinceridade com que vos falo nas horas boas, é a mesma com que vos falo
nas horas más. Conforme prometi, aqui estou a dar-vos mais notícias
sobre a situação. Até este momento não temos notícias seguras sobre a
evolução dos acontecimentos em Sá da Bandeira. A situação é indefinida.
Acho que não vale a pena correrem-se mais riscos inúteis. A partir
deste momento, o vosso destino é este navio, que rumará de imediato para
Walvys Bay. Vou dar ordens neste sentido ao comandante do navio. Boa
sorte e...até um dia.»
Walvys
Bay é uma pequena cidade piscatória situada no território vizinho,
outrora conhecido por Sudoeste Africano, a cerca de 480 milhas a sul de
Moçâmedes. A capital é Windhoeck, no interior do país, com cerca de 60
mil habitantes. O poder político é ilegalmente assumido por um
Administrador-Geral designado pelo governo da África do Sul, que
administra o território, já depois das Nações Unidas terem declarado o
território, um Estado soberano da África Meridional, desde 1968.
Os
seus 824 269 Km 2 estão impantados na faixa litoral desértica do
trópico de Capricórnio –deserto do Namibe - , este por sua vez,
confinando com o extenso Kalahari, planaltico desértico, habitado por
hotentotes e bochímanos. Tem cerca de um milhão de habitantes, sendo o
primeiro produtor mundial de urânio e o segundo em diamantes.
O
procedimento realista, honesto e de elevado espírito de solidariedade
revelado pelo Delegado da FNLA, numa altura dramática em que estavam em
jogo o destino e as vidas de cerca de 1600 pessoas, de entre as quais
muitos velhos e doentes que os familiares iam deixando no afã de
deixarem Angola, calou bem fundo em todos quantos «tomaram de assalto» o
navio. Logo ali tentaram demovê-lo de nos deixar. Mas, resoluto, desceu
do portaló, embora com a promessa de voltar, para viver connosco a
incerteza do destino dos que, frustradamente, se sentiam sem Pátria, sem
Rumo e sem Futuro.
Soube-se
mais tarde, por relato de pessoas que estavam na cidade do Namibe, e
presenciaram antes de partirem no rebocador «Vouga», que o Felício e
militares da FNLA dinamitaram as instalações do Banco de Angola e de lá
retiraram todo o dinheiro e valores. Naquela esquina envidraçada da Rua
dos Pescadores, em Moçâmedes, havia notas no chão das ruas, como folhas
caidas em dia outonal.
No
crespúsculo de uma tarde quente do Verão de África, e com a noite a
ameaçar envolver-nos como que cúmplice do nosso triste destino, o
navio, de luzes apagadas, solta as amarras, dolentemente, afasta-se do
cais, rumo ao desconhecido.
Crianças no cais. Foto protegida pelas leis de Copyright
ERA A FASE ESCURA DA LUA A ENVOLVER TUDO E TODOS...
«DIARIO DE BORDO» DE UMA VIAGEM ESPERADA
Cortaram-se
definitivamente para muitos, senão para todos, os últimos laços físicos
que nos ligavam a Moçâmedes, a Angola, à nossa Pátria. A comoção era
visível em todos os rostos. O silêncio de cada um e de todos era
aterrador, a tornar ainda mais pesada a negritude da noite que caia.
Lágrimas rebeldes rolavam pelas faces enrugadas dos mais velhos,
tentando todos, aperceberem-se da transcendência daqueles amargos
momentos.
Ainda na baía de Moçâmedes, uma familia de refugiados: foto protegida pelas leis de Copyright
Um rol de interrogações desfilava no meu
imaginário e de todos os meus companheiros de aventura. Que fazer? Que
destino? Como sobreviver apenas com uma pequena mala contendo roupas?
Onde e como estariam a minha mulher e os meus filhos postos a recato em
Portugal? Será que aquele país a viver intestinamente a ressaca da
revolução, e cujas notícias acompanhávamos pelos relatos da BBC, ou a
comunidade internacional sabiam da nossa existência e achariam solução
para nós? Para tantas interrogações, uma mão cheia de NADA e outra
prenhe de COISA NENHUMA.
Moçamedenses em fuga... Foto protegida pelas leis de Copyright
Moçamedenses em fuga...Foto protegida pelas leis de Copyright
Entretanto, a cidade ia ficando longe, cada vez mais longe, triste, abúlica, envolta no manto plúmbeo da noite.
Adeus Porto Alexandre, minha terra natal, da minha meninice descuidada, livre, feliz, como foi a de todos os meninos naquela terra. Adeus Moçâmedes,
dos meus sonhos de adolescente, de homem feito, onde conheci e amei a
minha mulher e onde nasceram os meus três filhos. Parte de mim aí fica
sepultado para sempre, nas areia cálidas do teu deserto, e nas
quentes águas das tuas baías, praias e enseadas que tantas vezes
calcorriei. Todas as ruas, becos, caminhos, picadas, bocados de ti, são
também pedaços de mim, arrancados violentamente do meu corpo por maõs
enegrecidas e assassinas. Perpassa pela minha memória a panóplia de
emoções de uma vivência feliz, que julgava ter a duração da minha vida.
Não
me banharei mais nas tuas praias, que vão do Cabo de Santa Maria à foz
do Cunene. Não experimentarei mais o êxtase e a comoção das caçadas, da
Pediva ao Iona, passando pelo Tambor, Espinheira, Virei ou Pico do
Azevedo, cruzando o deserto em todas as direcções, pelas «mulolas»,
picadas e trilhos sem fim, dormindo ao relento, noite dentro, farol do
Piambo cintilando ao longe, escutando o marulhar das ondas batendo nas
rochas, ou, no dia seguinte, lavando e acondicionando a caça nas praias
do Kangulo, Mariquita ou Três Irmãos, para ludibriarmos a vigilância dos
fiscais dos Serviços Veterinários. Adeus pesca submarina nas Pedras
Negras, Cabo Negro ou Baía das Pipas, preliminar da subsequente
caldeirada que «in locco», só o meu sogro sabia fazer e condimentar a
preceito.
Refugiados moçamedenses em fuga... No centro, Albertino Gomes e Artur Trindade e esposa. Foto protegida pelas leis de Copyright
Do
porão deste navio, a miscegenação de raças e de credos, de brancos,
pretos e mestiços, homens e mulheres, crianças e anciãos dão-me uma nova
perspectiva de convivência inter-racial e de solidariedade humana.
No
silêncio desta tenebrosa noite de sábado, 10 de Janeiro de 1976, que,
para sempre ficará na minha memória, entre a multidão que partilha
comigo o mesmo espaço, a mesma angústia, e a incerteza do mesmo
destino, sinto-me só, triste e abandonado, qual corpo senil, sem vida e
sem préstimo.
Navegando no mar alto, com roupa a secar...Foto protegida pelas leis de Copyright
Do
tombadilho, contemplo o horizonte, e à medida que a cidade vai ficando
mais longe, com o oceano ganhando espaço de permeio, os olhos
humedeceram-se-me de lágrimas de há muito não choradas, por estar ciente
de que nunca mais voltarei a Moçâmedes/Namibe nem a Porto Alexandre.
Paira também o desespero dos meus companheiros de jornada, brancos,
pretos e mestiços, homens e mulheres, crianças e velhos, a imagem,
afinal, da colonização «sui generis» perpretada pelos portugueses em
África e no mundo e que outros brancos e pretos, falando ou não outros
idiomas, derramando-se por poltranas e gabinetes luxuosos ou
movimentando-se nas «chanas» e matas desta Angola purulenta de chagas
que já fedem, insistem em renegar ou escamotear.
11 de Janeiro de 1976. Domingo
O
final da noite de ontem e a manhã de hoje foram ocupadas em
organizarmo-nos. No afã da partida, e porque a mesma foi decidida de
imediato, poucas pessoas se prepararam com o indispensável. E o
indispensável era, necessáriamente, tudo quanto se prendesse com a
alimentação, vestuário, agasalho e medicamentos.
Por
volta das 16,00 horas foi servida uma refeição quente com o que foi
possivel confeccionar. Ordeiramente, as pessoas formavam fila e iam
sendo servidas até a comida acabar. Os menos expeditos, obviamente não
eram contemplados, e, se nada tivessem de seu para comer, teriam que
aguardar por nova refeição no dia seguinte.
Procedendo à lavagrm de roupa :foto protegida pelas leis de Copyright
Muito
embora em Janeiro faça calor, as noites são muito frias e, quanto a
agasalhos, também não fomos muito previdentes. As pessoas que não
quizeram, ou que não puderam ir para os porões, tiveram que pernoitar no
tombadilho e convés e arrostar com o frio e a humidade da noite. Os
que podiam, cediam agasalhos, especialmente aos mais idosos ou
adoentados e como durante o dia o Sol era abrasador, houve que cobrir
todo aquele espaço com lonas e mantas , sarapilheiras, tudo o que
pudesse resultar em abrigo.
12 de Janeiro de 1976. 2ª feira
Cerca
das 9 horas, avistou-se Welvys Bay. O navio não foi autorizado a entrar
no porto, tendo ancorado fora das águas territoriais. Quase de imediato
foi visitado por médicos e autoridades sul-africanas. Após se
inteirarem da situação em que nos encontrávamos, foi evacuada uma
senhora, que necessitava ser hospitalizada.
Ajudando ao desembarque de idosos e doentes: foto protegida pelas leis de Copyright
Continua
a expectactiva sobre o nosso destino. Os noticiários são escutados
atentamente por toda a gente, retransmitidos pelos alti-falantes de
bordo. Nada noticiavam cobre a situação do «Silver Sky».
Durante
o dia, vários aviões sobrevoaram o navio e eram visíveis fotógrafos e
repórteres de televisão ou cinema. Mais autoridades sul-africanas
visitaram o navio, nada transpirando dessas visitas.
13 de Janeiro de 1976. 3ª feira
As
noites continuam muito frias. Pela manhã deparou-se-nos uma situação
que muito nos entristeceu. Uma senhora octogenária de uma família da
Torre do Tombo, em Moçâmedes, viajava no tombadilho abraçada à filha,
cega, corpo definhado pela sub-nutrição, ambas enroladas no mesmo
cobertor. Eram absolutamente dependentes do auxílio dos outros e naquela
posição de abraço fraterno permaneciam. A mãe, por já não poder andar, a
filha, Linda de nome, por ser cega e doente. Uma dependente da outra, e
ambas da caridade alheia. De manhã, deram com elas imóveis, como era
esperado, a filha abraçada à mãe que era cadáver. Falecera durante a
noite, sem que ela disso se apercebesse.
A
vida, porém, tem que continuar, e a expectativa , também. Os géneros
alimentícios vão rareando. Houve necessidade de se concentrar todos os
alimentos dispersos por todos nós, para se poder confeccionar uma única
refeição diária.
Uma
equipa médica da Cruz Vermelha Internacional, visita o navio, recusando
abandoná-lo sem que as autoridades sul-africanas, de novo, vejam as
condições sub-humanas em que se vive a bordo.
Ao
fim da manhã, vislumbram-se as primeiras traineiras que partiram de
Porto Alexandre, e o arrastão «Rio Vouga», trazendo, sabe-se agora, a
totalidade das populações de Moçâmedes e Porto Alexandre. Pelos
comunicados das traineiras, via rádio, sabe-se que a traineira «Sagres»
foi abandonada na viagem por se ter deflagrado incêndio a bordo, tendo
todos os ocupantes sido recolhidos por outros barcos.
A
bordo de uma das traineiras uma parturiente deu à luz uma criança. O
operador do rádio de bordo solicita ajuda, em forma de injecções,
seringas, e antibióticos, e a presença de alguém com conhecimentos
médicos, que possa ajudar naquela emergência.
A
rádio sul-africana é escutada na sua emissão em português e deu
notícias da nossa aventura. Ouvimos, estupefactos, que o «Silver Sky», o
nosso navio, tinha sido tomado à força, pela população armada e que a
tripulação tinha conseguido dominar a situação. Outra fantasia de quem
forjou a notícia, a seu modo, com fins especulativos.
Ao
fim da noite um rebocador traz-nos alimentos, parte dos quais são
imediatamente cozinhados. Seis doentes são evacuados, por carecerem de
assistência médica urgente.
Cabe
aqui uma referência para o facto de haver já tantas pessoas a
precisarem de assistência médica urgente. É que, apesar das condições
péssimas de subsistência, havia a bordo muitos doentes que foram
trazidos do hospital da cidade, por familiares e amigos que não queriam
que eles lá ficassem, não só por a assistência que lhes era ministrada
ser praticamente nula, mas também pela falta de médicos, enfermeiros e
medicamentos.
Surgem as
primeiras notícias oficiais sobre a nossa situação, pela voz do Felício,
nosso único dialogante nas conversações com os sul africanos. As
autoridades sul-africanas recusaram-se a aceitar-nos. O comandante do
navio, médicos, e o comandante do porto intercedem pela prestação
urgente de assistência em terra, tendo este último, numa posição de
força, ameaçado autorizar a atracação do navio e pedir de imediato a
demissão do cargo.
Esta
atitude do Comandante do Porto de Welvys Bay calou bem fundo entre nós,
apesar da profunda decepção que de nós se apossou, ao constatarmos a
realidade nua e crua dos factos: as autoridades sul-africanas não nos
querem no seu país, e a sua apregoada solidariedade para com o povo
angolano, resume-se, egoisticamente, em colocar um travão no próprio
território angolano, à expansão do comunismo na África meridional.
Soube-se,
entretanto, que amanhã de manhã, as traineiras virão juntar-se ao
«Silver Sky», como companheiros de infortúnio e parceiros de desdita,
nesta aventura de que não se vislumbra o fim imediato.
Sentir-nos-emos,
de certo, mais confortados pois na parte que me toca, fiquei a saber,
pela escuta dos rádios das traineiras, que na «Maria João» vem lá o meu
irmão Abel, e na traineira «Maria Helena», dos meus tios Neca, Zé
Marques e Zé Camanhai, vêm as suas familias e a minha avó Catarina.
14 de Janeiro de 1976. 4ª feira
O
navio continua ancorado ao largo, sem permissão para entrar no porto,
agora já acompanhado das traineiras surtas de Porto Alexandre.
A
vida a bordo continua cada vez mais monótona. As horas arrastam-se
dolentemente. Os noticiários são ouvidos com avidez. Consta que
Benguela e o Lobito foram alvo de intensa metralha da aviação, mas não
se sabe que Movimento ocupa aquelas cidades.
Moçâmedes e Porto Alexandre são tristes palcos de sangrentos combates onde a UNITA parece levar vantagem.
Sabe-se
do esperado fracasso da reunião da OUA sobre Angola e da determinação
do governo cubano em continuar a enviar «observadores militares» e
armamento com destino ao MPLA, apesar do novo cessar fogo acordado entre
os três deligerantes.
Estas
notícias, apesar de nos entristecerem por dilacerarem ainda mais o
marterizado povo angolano, em nada altera a firme decisão da quase
totalidade dos brancos de seguirem para Portugal, em busca de paz e de
trabalho, e de irem ao encontro dos seus familiares que os precederam.
Esta
convicção domina também a maioria dos negros e mestiços, pois Angola,
para eles, não é mais que miséria, tristeza, caos, e a própria vida a
perigar, momento a momento.
Por
sugestão das autoridades sul-africanas, fez-se uma relação da
identidade de cada um, com a menção da nacionalidade que deseja optar.
Esta questão da opção da nacionalidade foi origem de longa controvérsia e
foi tema obrigatório em todas as conversas.
Escolha
de nacionalidade? Quem me quer como cidadão? Quem pode ser cidadão
angolano, e português? Será que passarei a ser apátrida, apenas por ter
cometido o «crime» de ter nascido em Angola, de pais brancos, ambos
naturais de Portugal? E a minha mulher, branca, de mãe angolana e pai
algarvio? E os meus filhos, naturais de Angola, assim como nós?
Tantas interrogações e nenhuma resposta.
15 de Janeiro de 1976. 5ª feira
Confirma-se
ser de 1600 o número de refugiados no navio, pois ontem, após terem
chegado os víveres, fez-se, já noite dentro, distribuição da única
refeição do dia composta de uma sande e de um copo de leite,
aproveitando-se a oportunidade para se fazer uma contagem que merecesse
crédito.
Procedendo à limpesa do navio. Amélia Maia à esq. Foto protegida pelas leis de Copyrig
ht
Hoje,
o Felicio apelou para a compreensão de todos no sentido de procederem à
limpeza e higiene do navio, especialmente do porão, onde dorme a
maioria das pessoas, tendo aquele espaço sido dividido em seis sectores e
nomeados os respectivos responsáveis pela limpeza e asseio.
Registou-se
um caso insólito que nos encheu a todos de alegria. Cerca das 09 horas
da manhã, uma senhora deu à luz uma menina, tendo sido assistida pelo
enfermeiro Milagre, de circunstância e de apelido.
Ontem, a equipe médica observou cerca de 30 doentes, considerados mais graves, ficando os outros para nova visita.
Fuga no Silver Sky.Limpeza a bordo. Foto protegida pelas leis de Copyright
Da
parte da tarde soube-se que a nossa odisseia era conhecida do mundo
inteiro, tendo apenas os governos da Suécia, Chipre, e a Organização das
Nações Americanas intercedido junto do Governo da África do Sul para
urgentre resolução deste caso.
A
população de Welvys Bay está solidária connosco tendo-se conhecimento
de manifestações cívicas de protesto contra atitude do seu Governo em
não ter permitido ainda a entrada dos refugiados angolanos no seu
território. As autoridades locais apenas se prontificaram a melhorarem
as nossas condições de vida, enquanto se aguarda pela definição do nosso
destino.
Da parte da
tarde, o Consulado de Portugal em Windoek iniciou a identificação de
toda a comunidade embarcada, dando relevo especial à existência da
nossa ascendência portuguesa, até à terceira geração, facto que nos
levou a cogitar, de que muitos angolanos, especialmente os de raça
negra, não deveriam ser evacuados para Portugal.
A
nosso pedido, o Consul recebeu os empregados do Banco de Angola, todos
da Agência de Moçâmedes, que lhe solicitaram que, através da Embaixada
portuguesa, fosse dado a conhecer à sede do Banco em Lisboa, a nossa
situação, e o nosso desejo de sermos repatriados (para Portugal), o mais
rapidamente possível.
Ao
cair da tarde chegou a que supomos ser a última embarcação com
refugiados a zarpar do porto de Moçâmedes: o rebocador «Rio Bengo».
Este
barco fez-se ao largo no sábado, dia 10, mas regressou a Moçâmedes na
segunda-feira seguinte, tendo sido alvo de fogo de morteiro que atingiu o
navio e feriu várias pessoas.
Esta acção, por parte da
UNITA, que parece agora dominar o extremo sul de Angola, dá-nos razão
quanto à decisão de abandonarmos Angola, para salvarmos a pele.
Com
efeito, os seguidores do Dr. Savimbi, na sua ânsia de extermínio
racista, destruição e morte de tudo quanto lembrasse a colonização, não
poupariam nada nem ninguém que fosse branco ou mestiço.
Oxalá
os anos vindouros não nos venham dar razão quanto aos verdadeiros
desígnios do Dr. Savimbi e seus seguidores, extremamente racistas e
tribais. Não me posso esquecer das sessões de esclarecimento de Savimbi
no Estadio Municipal da cidade, onde em português anunciava que os
brancos eram necessários em Angola para a construção de uma nova
Pátria, e slogans semelhantes, e em «umbundu», acicatava instintos
raciais, incitando os negros a acabarem com os colonos que os dominavam
há quasi 500 anos. Ele esquecia-se que haviam muitos brancos que
dominavam aquele dialecto.
Era
do dominio público que a UNITA tinha enviado uma mensagem através de
medeireiros ao então Governador Geral de Angola, Coronel Rebocho Vaz,
propondo-lhe auxiliar o Exército português a derrotar o MPLA, proposta
que não mereceu crédito nem resposta.
16 de Janeiro de 1976. 6ª feira
Consta
que o «Silver Sky», ainda ancorado em águas internacionais, vai obter
permissão para, finalmente, entrar no porto de Welvys Bay. Hoje, pela
manhã, várias equipas de enfermeiros procederam à inoculação da vacina
anti-tifoide, o que nos leva a pressupor de que iremos, ao fim de sete
dias de cativeiro em mar alto, pôr pé em terra firme.
Esta
perspectiva, deixa-nos simultaneamente eufóricos e apreensivos, por
finalmente a nossa situação começar a aclarar-se, perdurando a dúvida se
no bom ou no mau sentido.
17 de Janeiro de 1976. Sábado
Faz
hoje oito dias que nos encontramos a bordo. A Cruz Vermelha fez
finalmente a sua aparição, tendo evacuado mais quatro doentes que
careciam de tratamento médico urgente.
Consta que são esperadas aqui, em Welvys Bay, mais 34 traineiras do Lobito e Benguela também com refugiados a bordo.
Vários
angolanos, já radicados em diversas cidades sul africanas, vieram de
barco visitar-nos, sem lhes ter sido dada a permissão para entrarem no
navio. Por eles ficámos a saber da sorte de outros familiares e amigos
que ficaram no Namibe/Moçâmedes e Tombwa/Porto Alexandre. Boas notícias
para uns, incertezas que continuam, para outros.
Devido
à intercedência de familiares junto das autoridades locais, doze
pessoas, portadoras de passagens aéreas já compradas para Lisboa, foram
autorizadas a abandonarem o navio. Para esses, num mar de abraços e
recomendações, a odisseia terminou.
Continuou
a chegar mantimentos em grande profusão, o que, paradoxalmente, é mau
pronúncio, pois de cada vez que vemos chegar embarcações atulhadas de
géneros alimentícios, é sinal de que a nossa permanência no navio
continuará por mais algum tempo.
À noite um acontecimento agradável quebrou a monotonia e a sensaboria da nossa convivência comunitária.
Com
a presença do Comandante do navio e esposa, improvisou-se um
espectáculo de variedades a que não faltou orquestra, e que contou com
saudosos valores dos palcos moçamedenses, como o Minas, Mário
Figueiredo, Albertino e Raúl Gomes, a par das fifias dos caloiros, que a
assistência magnanimamente aplaudiu. O improvisado. Serão terminou com
uma desgarrada à boa maneira portuguesa.
18 de Janeiro de 1976. Domingo
Hoje
pelas 10 horas da manhã, para os católicos, houve o sagrado culto da
missa. Convém referir que entre nós, há quatro padres católicos e
algumas madres, que prestaram desvelados serviços de assistência aos
mais carenciados, sacrificando, elas próprias, algumas comodidades e
alimentos para benefício de velhos e crianças, como é próprio do seu
apostolado.
Será tempo de
se dar uma ideia das acomodações que temos no navio. O «Silver Sky» é um
cargueiro grego que há 25 anos navega pelos sete mares. As suas
instalações, nada famosas, apenas para os seus 38 tripulantes, passam a
dar guarida , agora, a 1600 pessoas.
As poucas cabines foram disponibilizadas, pela tripulação para os mais idosos.
O
resto, que era a maioria esmagadora das pesssoas, disseminou-se pelos
porões, tombadilho e convés, corredores, dormindo todos no chão e, nos
primeiros dias, sem mantas nem agasalhos adequados às frias noites deste
extremo meridional do continente africano.
A
utilização dos mictórios das casas de banho era através de filas e
depressa entupiam. O cheiro era insuportável, e de tal maneira o odor a
amoníaco empestava o ambiente, que teve de se improvisar várias
plataformas de madeira, na borda do navio, para servirem de sentinas, e
escalar plantões, noite e dia, para verificar se cada utente procedia à
sua respectiva limpeza depois de utilizadas.
A
cozinha também não tinha condições para confeccionar refeições para
todos. As panelas, de reduzido tamanho, tinham que ir ao fogo várias
vezes e, havendo uma só refeição diária, a cozinha funcionava as 24
horas por dia.
Por turnos, as mulheres eram escalalas
para cozinheiras, e os homens para ajudantes, servindo-se,
prioritariamente as crianças, os idosos e os doentes, as mulheres, e
por fim os homens.
Todas
estas normas de disciplina comunitária eram acatadas sem controvérsia.
As filas para as refeições, e aqui tudo se obtia formando filas, era
outro espectáculo. Como não havia pratos, copos nem talheres, houve que
improvisar, e tudo servia, ora como copos, ora como pratos e, após as
refeições, eram guardados religiosamente, longe de olhares cobiçosos,
como se das melhores porcelanas da Vista Alegre se tratasse.
A
permuta de tudo quanto tivesse valor, era livre e feita em profusão. Na
parte que que toca, achei vantajosa a troca com a senhora, que se
acomodava ao meu lado, no porão, de um pedaço de sabão que não me fazia
falta, por uma pequena almofada, que passei a utilizar como travesseiro.
No
que concerne aos alimentos, consta que os géneros que diariamente nos
trazem, desde que estamos ancorados, são oferta do povo de Walvis Bay,
cidadezinha onde se fixaram alguns portugueses e muitos angolanos,
recentemente ali radicados, que se condoeram com a nossa situação,
semelhante à que já haviam experimentado, e como protesto contra a
atitude do governo sul africano em não nos auxiliar com a devida
presteza e eficiência.
19 de Janeiro. 2ª feira
E
de súbito, a boa nova. O Felicio reuniu toda a gente para comunicar que
o navio iria atracar, mas que ninguém sairia de bordo, até ordens em
contrário.
Passadas
algumas horas, que mais pareciam uma eternidade, o navio pôs-se em
marcha. Devidamente escoltado por dois rebocadores portuários, e por
entre as saudações dos nossos companheiros das traineiras, o «Silver
Sky» dirigiu-se lentamente para o porto da baía de Welvys Bay, onde,
finalmente, atracou.
Depois
do navio acostado, o Felicio chamou de novo toda a gente e, com voz
repassada pela emoção, disse que nos ia deixar, por a viagem ter
terminado, desejando-nos a todos boa sorte.
Aproveitámos
a oportunidade para agradecermos calorosamente ao comandante do navio,
sua esposa e tripulação e pedimos à autoridade ali presente para também
transmitir ao povo de Welvys Bay todo o nosso agradecimento pelo auxilio
prestado, e a simpatia e o sentimento humanitário com que acompanharam a
nossa permanência ali perto.
Depois,
foi a ansiedade que de todos se apossou, ao saber-se dos rumores de que
cerca de 600 pessoas iriam sair já naquela manhã.
Fuga de Moçâmedes no Silver Sky :foto protegida pelas leis de Copyrignt
Os
rumores confirmaram-se. Fui dos primeiros, escolhido para acompanhar o
senhor Ervedosa, funcionário aposentado do Banco de Angola que nunca
quiz sair de Moçâmedes, a descer a inclinada escada de saida do navio.
Vesti-me a preceito, com o único fato que tinha, gravata emprestada, que
não disfarçavam o aspecto desleixado que a barba e o cabelo comprido
davam ao meu visual.
Ao
descer as escadas, amparando o «velho Ervedosa», como carinhosamente o
tratávamos, fui alvo das objectivas das câmaras fotográficas e de
televisão, não por mim, obviamente, mas pelo ancião que acompanhava.
No
cais, e a entrada para um comboio especial que nos iria levar a
Windoek, capital do território, a cerca de 280 Km, no interior, o
final da nossa viagem, fosse ela qual fosse, estava agora mais perto.
para além de algumas pessoas conhecidas ou de familiares e de elevado
número de profissionais da informação (rádio, cinema, televisão), num
eficiente serviço de recepção e de apoio prestado pela Cruz Vermelha
Internacional (vacinas, refeições frias e rápidas, cigarros, roupas,
objectos de higiene pessoal, etc). Tudo isto em fila ordenada por
militares sul-africanos, que utilizaram para aquele efeito tendas de
campanha e as próprias instalações do porto, disponibilizadas para
aquela eventualidade.
Cumpridas
todas aquelas demoradas formalidades, e já dentro das carruagens do
comboio que nos levaria a Windoek, porque a partida se atrasara devido à
morosidade da saída das 600 pessoas do navio, fomos obsequiados,
através das janelas das carruagens, com chávenas de canja, sandes e
bolos, oferecidos pelas senhoras portuguesas que, deste modo também
quizeram minorar as nossas necessidades imediatas. E que boa ajuda elas
nos prestaram, especialmente aos nossos sacrificados estomagos.
Constou
que os angolanos de raça negra e os que, portanto, não demonstraram
possuir nos seus antepassados ascendência portuguesa até à terceira
geração, foram conduzidos à fronteira, para regresso a Angola.
Finalmente,
cerca das 20 horas, o comboio dos refugiados angolanos pôs-se em marcha
com destino à capital namibiana, nova etapa desta tragédia, que, nem
mesmo em noite de pesadelo, nunca ninguém ousara sonhar viver.
20 de Janeiro 3ª feira
Cerca
das 11 horas da manhã chegámos a Windhoek e de imediato colocaram-nos
em autocarros e encaminharam-nos para um «Campo de Apoio» dentro da
cidade. Eram antigas e abandonadas instalações hospitalares, só com
paredes e tectos sujos, sem as condições mínimas de decência e higiene
para acomodar pessoas.
Distribuiram-nos
duas mantas desintectadas, pelo cheiro que delas exalava, um sabonete,
toalha, dois pratos, copo e talheres e desinfectante em pó para
pulverizar as camas de ferro, com estrado de madeira, à guiza de
colchão.
Depois de
conhecermos os dormitórios, distribuiram a primeira refeição composta
por duas fatias de pão escuro, nada saboroso, e duas sandes de conserva
de atum e água.
Ali
permanecemos o resto do dia. Começaram a chegar mais amigos mas o
contacto com o exterior era à distância, pois o «Campo» era vedado com
arame farpado, e agentes da polícia impediam, em termos violentos, que
de um lado ou do outro se chegasse à vedação.
Mesmo
assim o meu tio Mário Martins, que tinha ido de automóvel para
Windhoek por motivos de saúde, apareceu na parte exterior do «Campo», e
conseguimos, a muito custo conversar, gesticulando, sempre sob a
vigilância atenta dos agentes sul-africanos.
Gostei muito de o ver, mas, infelizmente, embora me tivesse perguntado, em nada me podia valer.
Como
o «Campo» está praticamente dentro da cidade, fomos objecto de olhares
curiosos de todos os passantes, sentimo-nos como feras ou animais
exóticos expostos num Jardim Zoológico.
Por
este cuidado todo, evitamos contactos com familiares que vivem em
Windhoek e que nos visitaram, e logo depreendemos que resultariam
infrutíferas quaisquer diligências em obtermos o «permit» para sairmos
do «Campo».
Soubemos
depois que os sul-africanos quizeram tirar dividendos politicos deste
abandono total das cidades do sul de Angola às hordas assassinas dos
guerrilheiros da UNITA, movimento que apoiam, tentando evitar que
transmitissemos para o exterior a ideia de que tinha sido exactamente
devido àquele Movimento que toda a gente abandonou Angola, no passado
recente.
À noite, foi-me
servida uma sande e uma chávena de café com leite, perfazendo 3 sandes e
2 chávenas de café com leite, os únicos alimentos ingeridos hoje.
21 de Janeiro. 4ª feira
A
parte da manhã foi dedicada à limpeza das instalações do «Campo»,
tendo-se procedido, para o efeito, à elaboração de escalas de turnos.
Da parte da tarde foi finalmente anunciado que, no dia seguinte, iria
ter início a ponte-aérea Windohek/Lisboa, com a saida de dois aviões,
transportando cada um, 180 pessoas.
Como
no «Campo» havia famílias em que alguns elementos ainda se encontravam
a bordo do navio, e como não desejassem desfazer o agregado familiar,
foi ordenada nova fila, apenas para as pessoas que estavam prontas a
partir.
Mais contactos à distância com pessoas amigas
já residentes em Windhoek que, sabendo das nossas carências alimentares
se apressaram em ir à cidade, trazendo-nos frutas, refrescos e sandes.
Enquanto
a noite não chegava, foi a azáfama de refazer e acondicionar os nossos
pertences (os meus couberam numa malinha verde de cartão, que guardarei
como relíquia), tomar banho, barbear-nos, no propósito de tornear a
apresentação pessoal de cada um, o melhor possível, para o reencontro
com os nossos familiares em Portugal.
22 de Janeiro. 5ª feira
Dos
2500 companheiros de infortúnio que, fraccionadamente deixaram
Moçâmedes e Porto Alexandre no «Silver Sky», rebocador «Rio Bengo» e nas
traineiras, 180 partiram no primeiro avião, e mais 180 no segundo, que
partiu duas horas depois.
O
pequeno almoço estava marcado para as 9 horas, mas já às 4 horas da
madrugada os mais impacientes estavam de pé. Quase que garanto que nesta
última noite passada em Windhoek, e que era também a última noite em
África, ninguém conseguiu dormir.
Devido
à antecedência da nossa comparência, dejejuamos mais cedo, formamos
fila, conferiram os nossos nomes, e mais cedo partimos para o
aeroporto, distante 42 km da cidade. Alí chegados, cerca das 9 horas,
fomos conduzidos em fila indiana a umas instalações cercadas de arame
farpado (estes sul-africanos ou têm excedentes de arames, ou suspeitam
de tudo e de todos, até das suas próprias sombras).
Cerca
das 14, 30 horas, ainda em fila, e, antecedido de nova chamada,
dirigimo-nos para o Boeing 707 «Vera Cruz» da TAP, que deixou o
aeroporto uma hora depois. Às 19 horas, o aparelho fez uma escala
técnica em Abidjan, na Costa do Marfim, para reabastecimento, não nos
tendo sido autorizado sair do avião.
Duas
horas depois, deslocamos rumo a Lisboa, fim da nossa odisseia de fuga à
guerra, de abandono forçado da Pátria que não nos quiz, mas com a
garantia de continuarmos vivos e o propósito de nos sentirmos Homens
úteis onde quer que sejamos acolhidos.
Talvez
devido aos fusos horários ou à emoção da chegada, não sei se hoje foi
ontem ou se amanhã é hoje. Não penso na incógnita e na incerteza do
futuro, num país que embora conste do meu Bilhete de Identidade como
sendo o meu, não sei se me acolherá como filho ou como enteado, com toda
a carga de rejeição e repulsa que o termo, por vezes, contém.
Não
penso em nada disso, nem me apercebo da azáfama do aeroporto de Lisboa,
com pais à procura de filhos, esposas tentando lobrigar maridos,
parentes à cata de familiares, curiosos na expectativa de abraçar ou
rever amigos.
Reporteres
da imprensa falada e escrita tentam transmitir para a posteridade a
amálgama de sentimentos e emoções que se transmite num abraço, num
beijo, numa carícia, até num aceno ou num olhar fugaz.
No
seio desta babilónia, lá estava o IARN (Instituto de Apoio ao Retorno
de Nacionais) a dirigir as pessoas, em mais filas, para a fotografia,
para a identificação, para a entrega de documentos, alojamentos, etc.
E,
repentinamente, cai nos braços do meu sogro que me aguardava há muitas
horas na expectativa de que eu, o Pedro Rolão e familia estivessemos
entre os que chegavam. Estava finda a odisseia da fuga da guerra que
durou 13 dias.
Agora, era a
emoção de rever a minha mulher e os meus filhos, 108 dias após a
partida deles de Moçâmedes para Luanda, em 4 de Outubro de 1975.
Amanhã
será outro dia para mim e para todos. Começará decerto uma outra
epopeia pela sobrevivência, num pais com 700 mil desempregados,
politicamente instável, economicamente débil, socialmente conflituoso,
onde o FUTURO se nos apresenta incerto, mas não apreensivo como o
espectro da Guerra a que, decididamente, voltamos as costas.
«OS MESES NÃO SÃO LONGOS,
NEM OS DIAS, NEM AS NOITES.
LONGA SIM, É A GUERRA »
Lisboa, Aeroporto da Portela de Sacavém, 22 de Janeiro de 1976.
(ass) Mário Augusto da Silva Lopes
FIM
Gostaria de acrecentar aqui que por esse tempo a bordo do Navio
Silver Sky tudo
era racionado e distribuído em matéria de víveres , pelo que era comum chamarem pelo nome do pai e número de filhos, A chamada um a um, era apenas para aqueles que viajavam sós, Mas havia ali um passageiro muito especial que aglutinava em si uma prole de nada menos que "19 filhos", era o bom Padre Dinis que levara consigo os garotos da Casa dos Rapazes de Moçâmedes.
Segue a lista (em elaboração) dos habitantes de Moçâmedes que abandonaram a cidade neste navio (a completar...)
Alberto dos Santos Ramos Neca
Albertina Rodrigues Martins Neca
Ahlers Alberto Martins Neca
Aguinaldo Matos (Banco de Angola) e genro
Albertino Gomes
Amélia Maia
Angelo Nunes de Almeida e filho
Antonio Freitas
Antero de Quental
Artur Miranda Trindade e família
Carlos Quental
Correia (do talho)
Duarte Cardoso
Ervedosa
Fragata (3 elementos da familia)
Felício
Gabriela Cardoso
Henrique Minas e familiares
Irmãs Doroteias do Colégios Nossa Senhora de Fátima
Jaime Custódio (Banco de Angola), e sogro
José Manuel Paulo Nascimento (Mantela)
José Joyce Chalupa e Dina Chalupa
Josefina Cordeiro
Jorge Maló de Almeida
José Santos (Zeca) do Banco de Angola
Laurindo Pradanta Marques Couto
Licinio
Luis Alberto Colmonero
Luis Edmundo Cordeiro (trabalhava no porto de Moçamedes)
Linda e mãe
Luis Alberto de Noronha Cardoso (professor Ginástica ECM)
Maria Augusto da Silva Lopes
Manuel Azevedo Osório
Mário de Sousa
Manuel Virginio Azevedo do Nascimento , Celeste Custódio Nascimento, Celeste de Freitas Custódio
Maria Manuela Seixas Cardoso
Mario Augusto da Silva Lopes
Mário Figueiredo
Mena dos Correios
Odete Maló de Almeida
Osório (Banco de Angola)
Padre Pinto Lobo
Palmira Quental
Paulo Quental
Virgilio Nunes de Almeida
Padre Dinis Lopes e seus pupilos da Casa dos Rapazes de Moçâmedes
Luis Edmundo Cordeiro (trabalhava no porto de Moçamedes)
Ilma dos Santos Cordeiro,
Fatima Cordeiro
Filomena Cordeiro
Antonio Freitas
Josefina Cordeiro.
Raúl Gomes
Suzete Martins Neca
Continua....
Esta foto da familia Duarte, foi tirada dias antes de sairmos de Tombwa, em 10 de Janeiro 1976, disse Carlos Duarte. Foto protegida por leis de Copyright.
10 de Janeiro de 1976. Impressionante foto da fuga das traineiras de Tombwa (ex Porto Alexandre), tirada à entrada na baía de Welvys Bay
AINDA O 10 DE JANEIRO DE 1976..
FUGA DE PORTO ALEXANDRE (actual TOMBWA)
No
mesmo 10 de Janeiro de 1976, para além da fuga no Silver Sky do
último núcleo de europeus residentes em Moçâmedes, deu-se também a fuga
daqueles que persistiram em ficar em Porto Alexandre (actual Tombwa),
esta, através do único recurso ao seu alcance: TRAINEIRAS!
O
abandono precipitado deste pequeno núcleo ficou a dever-se à notícia
difundida pela rádio Lubango, e retransmitida através dos microfones do
Rádio Clube de Moçâmedes, avisando a população que a UNITA, militarmente
reforçada, ia a caminho do Namibe para se vingar das matanças de
guerrilheiros seus, efectuadas semanas antes pela FNLA, e que não iria
distinguir ninguém, considerando os brancos que alí ficaram seus
inimigos.
Estes
alertas foram escutados pelas gentes de Porto Alexandre, a 100 km de
distância de Moçâmedes, que, em pânico, e seguindo o exemplo do que se
estava a passar na capital de distrito -onde a população europeia que
restava, em pânico, refugiou-se a bordo do navio cerealífero grego que
se
encontrava no cais, "Silver Sky"- resolveram fazer-se ao mar a bordo das
traineiras disponíveis, carregando consigo os haveres que conseguiram
reunir, incluso alguns automóveis, nas traineiras de maior porte . Entre as várias traineiras iam as traineiras de
Lourdino Tendinha, a "Nossa Senhora do Rosário" e a "Navegantes" de
Baptista. Por ora não temos os nomes de todas aquelas que se
incorporaram nesta fuga.
Registamos sob o acrónimo MLIT, o testemunho de alguém que viveu este
drama, que partiu de Angola, Tombwa (ex-Porto Alexandre) nesse 10 de Janeiro de 1976, rumo Welvys Bay (no Sudoeste
Africano), para em seguida ser enviada de avião para Windhoek, onde tomou o avião para Portugal.
Segundo MLIT, que fez
parte do grupo da traineira "Navegantes", num primeiro
tempo ficaram a aguardar notícias em alto mar, porque o intuito
inicial era o regresso a terra, quando a situação acalmasse. Porém as
notícias escutadas pela rádio tardaram e quando estas chegaram não eram
promissoras, e tiveram que prosseguir viagem para Welvys Bay. Valeu-lhes o facto de terem algumas das famílias mais
precavidas arrecadado, em suas casas, alguns mantimentos que iam conseguindo
arranjar, e que iam acomodando em caixas de cartão que levaram consigo
(latas e conservas e outras latarias, arroz, batatas, carne, peixe,
massas, legumes, fruta, bolachas, bolos, bebidas etc.). Para trás
ficaram todos os bens que haviam conseguido ao longo de uma longa vida
de trabalho: casas, pescarias, lojas, mobiliário, electrodomésticos,
automóveis, roupas, etc, incluso albuns de recordações. Fizeram uma paragem na Baía dos Tigres, onde foram a terra com
o intuito de arrecadar, no Hospital da povoação abandonada, algum
material hospitalar que lhes pudesse ser útil (medicamentos,
luvas, gazes, pensos, algodões, tesouras, alcool puro, água oxigenada,
seringas, etc.), uma vez que numa das traineiras, "a Sial", viajava uma
senhora grávida de 8 meses, tendo o marido conseguido o
material e levado consigo uma embalagem de medicamento destinado a
aceleração e indução do trabalho de parto. Uma previdência, pois
já no alto mar, nessa mesma tarde, enquanto rumavam a Welvys Bay, a
senhora deu à luz uma menina, a quem foi dado o nome o nome do navio. Outros dizem que se chama Sial Marina, porque o padre não aceitou o nome pretendido, mas sobre isso não
temos certezas.
Foi um inesperado nascimento a bordo, sem as mínimas
condições asépticas, que se constituiu numa verdadeira odisseia vivida,
sofrida e acompanhada de longe e de perto, pelos ocupantes do comboio de
traineiras em fuga. Da traineira onde viajava a parturiente
tinham lançado apelos pela rádio para as outras traineiras a pedir ajuda
de alguém entendido na matéria. Mas se por um lado, as senhoras que viajavam com a parturiente, dado o estado de enjoo em que se achavam, não podiam ajudar, o mar agitado também não permitia o transbordo da única enfermeira que viajava numa outra traineira,
e o parto acabou assistido pelo próprio marido aflito, enquanto ia
seguindo à risca orientações que durante toda a noite lhe iam sendo de
longe ditadas, via rádio, de como haveria de proceder em relação ao
corte do cordão umbilical, a partir de quantos cm. deveria este ser
feito, o desinfectamento do fio a utilizar, etc. etc.
Ainda segundo MLIT, chegados a Welvys Bay, em cuja baía já se encontrava já o "Silver Sky" que partira do Namibe (ex-Moçâmedes), navio e traineiras ficaram a aguardar a ordem de desembarque dos passageiros durante
cerca de 15 dias, até qe finalmente chegou a autorização das
autoridades sul-africanas. Foi um tempo de espera desgastante, em que
tiveram que suportar toda a série de privações de uma viajem sem as
condições mínimas exigidas, que sequer lhes permitiam levar a cabo os actos mais elementares de higiene. Também, segundo
MLIT, no dia em que o Cônsul português foi visitar as traineiras,
algumas senhoras, com os poucos mantimentos que restavam,
fizeram um almoço que ele partilhou.
Quanto ao destino a dar às gentes de Porto Alexndre, a Embaixada na África do Sul que tinha
tomado o assunto em mãos, encaminhou-as
para campos de refugiados, mas estas só aceitaram embarcar para Portugal quando
lhes foi garantido pelas autoridades portuguesas, à chegada, o devido
alojamento em Hotéis. Quanto ao resto dos trâmites, estes foram
idênticos ao acontecidos em relação aos fugitivos no Silver Sky, acima
relatados.
Mas segundo MLIT, também houve em Tombwa, quem tivesse desistido da fuga e optado, à última hora, por ficar: os Marques. Na tentativa de levarem também consigo para Welvys Bay, a sua traineira, que se encontrava a ser reparada num dos estaleiros da pequena cidade, esta familia ficou
juntamente com com uma outra familia, cujo marido e pai trabalhavam na
dita traineira. Com a chegada da UNITA a Tombwa (Porto Alexandre) e com
a fuga da FNLA, muitos dos residentes acabaram por ser feitos
prisioneiros, outros mortos, porém os Marques e a familia que os
acompanhou foram poupados, pois a UNITA fizera deles uma espécie de
"reféns", para o que desse e viesse. E de
facto só viriam a ser soltos quando os guerrilheiros deste movimento,
sabendo da notícias da chegada do MPLA, dois meses mais tarde, em Março
de 1976, se puseram em fuga. A verdade é que necessitaram deles e da sua
traineira para
poderem escaparem, rumo a Welvys Bay, de onde os Marques e
acompanhantes
seguiram, por via aérea, para Portugal, enquanto os ditos guerilheiros
foram recambiados para a fronteira com Angola, como era procedimento
comum com relação aos africanos.
OUTRO TESTEMUNHO:
Ainda
acerca os dramáticos momentos que antecederam a fuga da cidade do
Namibe no "Silver Sky", a 10 de Janeiro de 1976, importa referir que,
segundo alguns testemunhos, este navio cargueiro
estava como que apresado no porto de Moçâmedes
porque a FNLA (o movimento que então detinha o controlo da cidade,
após a fuga do MPLA, e os desmandos que se seguiram com a UNITA), não
permitia que dalí saísse, fazendo dele o último reduto, o local para
onde os seus guerrilheiros, dirigentes, simpatizantes e não só, se
podiam refugiar, no caso de invasão da cidade pelos outros movimentos, como sseria o caso do regresso do MPLA, ou da UNITA, o
que na verdade veio a acontecer.
Segundo
OMA (acrónimo com que designarei outra das fugitivas de Moçâmedes, no
"Silver Sky"), após a invasão dos sul africanos (em Outubro de 1975), e a
fuga do MPLA, tinha ocorrido na cidade um
a chacina da FNLA que dizimou váriosguerrilheiros da UNITA,
tendo os sobreviventes fugido para Sá-da-Bandeira
(Lubango), onde ficaram a aguardar reforços vindos de Nova
Lisboa (Huambo). Em Moçâmedes, à frente da FNLA (civil),
nesse curto periodo em que este movimento dominou a cidade,
encontrava-se um residente branco, cujo nome
OMA não foi capaz de lembrar, mas que joga com o que descreve Mário Lopes, portanto seria
Felicio, Este nas vésperas da
fuga realizou uma reunião no Palácio do Governador a fim de informar os residentes, sobretudo os brancos que persistiam em alí continuar, sobre o
que se estava a passar e o grande risco que corriam se persistissem em alí continuar, uma vez que a UNITA se preparava para descer a
Leba, para se vingar, e que não iria distinguir ninguém, tomaria todos os brancos como inimigos. O dito representante civil da FNLA aconselhou a
população branca para que, independentemente das suas inclinações, se
refugiasse no "Silver Sky", que não tivessem medo que o navio estava
ali para os proteger a eles (FNLA), e aos que estivessem em maior perigo. Surreal
foi o facto de no "Silver Sky" se terem acolhido, entre outros, alguns
brancos simpatizantes de cada um dos outros movimentos de libertação, a
par de guerrilheiros e dirigentes da FNLA... Alguém
tentou uma
explicação para o facto, sugerindo que a FNLA, apoiada pelos EUA,
potência capitalista e anti-comunista, encontrava-se infiltrada de
elementos brancos de direita e de extrema direita , alguns doa quais mercenários, e que estes, sendo brancos,
protegiam os seus iguais de côr de pele, ainda que de diferentes ideologias.
Aliás, corria a ideia de que a
FNLA, no sul, apresentava 2 tipos de exército, um deles constituido por
africanos, comandado por um africano, outro constituido por europeus,
comandado por um europeu, e ambos se encontravam sob o comando superior de um europeu.
De facto o que se torna dificilmente digerível é o facto de brancos se
associarem a um movimento conotado com a anterior UPA, a
dos massacres, em 15 de Março de 1961, no norte de Angola, acto que o próprio
Holden Roberto mais tarde, ao ser entrevistado, cinicamente lamentou. Continuemos o testemunho de O
MA.
Segundo OMA, quando
na cidade de Moçâmedes soaram as sirenes, e através de altifalantes se avisava se a
população, em alvoroço, para que se reunisse e se refugiasse naquele
navio que representava a salvação possível, uns encontravam-se em suas casas, outros estavam
envolvidos na labuta do dia a dia, muitas crianças estavam no interior do Colégio de Nossa Senhora de Fátima ao cuidado das Madres, outros achavam-se na praia... Muitas familias desconheciam o
paradeiro dos seus elementos... OMA não quiz partir sem levar
consigo para o "Silver Sky", os padres que ainda se encontravam na
cidade, as madres que se encontravam a dar aulas no Colégio, bem assim como
deixar
entregues aos pais as suas criaças, que as madres haviam levado para a
capela do mesmo colégio, pondo-as a cantar, para as distrair e assim evitar o pânico. OMA
sentia em si o peso dessa responsabilidade, mas
sentia-se impotente perante o desenrolar dos acontecimentos.
Dias
antes OMA tinha recebido um apelo do enfermeiro Franco, o único elemento
ligado aos cuidados de saúde, que ainda permanecia no Hospital de Moçâmedes, a dar
assistência aos doentes. Franco pediu ajuda
a OMA, tal
como haviam feito outras pessoas desesperadas, porque achavam que talvez
ainda
se podesse conseguir, por seu intermédio, algum milagre, através de um contacto com a Cruz Vermelha portuguesa. Quando OMA chegou ao Hospital e empurrou a porta da
enfermaria, deparou-se com um quadro desolador: o enfermeiro caido sobre uma cadeira, sem se poder erguer. Se o enfermeiro Franco eera já de si
aleijado de uma perna, ao cair, tinha fracturado a outra, e estava
completamente imobilizado e
sem saber o que fazer. Ao lado, nas filas de camas cobertas de lençóis
encardidos, erguiam-se na direcção de OMA braços de doentes moribundos, negros, brancos e mestiços,
gente idosa e gente de mais e de menos idade, todos pedindo socorro,
alimento, e tratamento. Um cenário aterrorizador. Os doentes não tinham que comer, a dispenseira
do Hospital de Moçâmedes tinha fugido, bem como a
maior parte do pessoal que alí trabalhava. Dar alimento àquela gente
seria a primeira medida a tomar, e OMA meteu maõs à obra, entrou em
contacto com outras senhoras da comunidade branca que ainda restavam na cidade, que se prontificaram a ajudar, cedendo parte dos alimentos que, em face
da situação, haviam arrecadado (arroz, massas, etc), retirando de
seus frigoríficos legumes, peixe e carne, etc., confeccionando enormes panelas de sopa, que ao fim dessa mesma tarde deram
entrada naquele Hospital para alimentar toda aquela gente esfomeada. Depois
foi o pânico, a fuga... As pessoas dispersaram-se num "salve-se quem puder" e só se encontraram já no cais ou no interior do "Silver Sky".
Muitos doentes ficaram no Hospital e nunca mais ninguém soube deles.
E
porque já não existiam malas à venda, nem madeira disponível para caixas e
caixotes, o recurso foram as trouxas de roupa que, amarradas
com fios, eram içadas do cais para o navio, e transmitiam ao observador atento, um
espectáculo dramático e deprimente.
OMA contou-me que o seu filho mais novo era
simpatizante do MPLA, e que, desgraçadamente nesse dia ela pôde se aperceber, do cimo do "Silver Sky", que no cais um residente branco de Moçâmedes, pessoa bastante conhecida e que alinhava ao lado da FNLA, estava a persuadir um militante negro da FNLA, que de arma em punho, se encontrava à entrada do navio, a não o deixar embarcar. O
filho viajou no "Silver Sky" porque OMA,
tomada de um pânico aterrador, desceu as escadas do navio e foi
buscá-lo.
Também segundo OMA, quanto os
guerrilheiros da UNITA chegaram à cidade, e dirigiram-se para o cais,
já o navio tinha levantado ferro, como vingança incendiaram os
caixotes que aguardavam o embarque no cais. Correu também a notícia que chegaram a
metralhar na direcção do navio, julgando poder atingi-lo. (esta notícias
carece de confirmação, pelo que se apela a quem tenha vivido este
drama, e que a leia, que a confirme ou não).
O
abandono precipitado deste pequeno núcleo ficou a dever-se como já foi dito atrás, à notícia
difundida pela rádio Lubango e retransmitida através dos microfones do
Rádio Clube de Moçâmedes, avisando a população que a UNITA , militarmente
reforçada, ia a caminho do Namibe, para se vingar das matanças de
guerrilheiros seus, efectuadas semanas antes pela FNLA, e que não iria
distinguir ninguém, considerando os brancos que alí ficaram como seus
inimigos. A ideia não era, pois, a de abandonar a cidade. A
promessa era de que o navio se afastaria para o alto mar, onde
permaneceria, até que em terra a situação acalmasse. O
navio acabou por prosseguir viagem porque estava ali gente da FNLA que
tinha que partir, pois sabia-se que na Angola independente o MPLA não
tardaria a tomar de novo a cidade, o que aconteceu algum tempo depois. A
ordem para prosseguir viagem para Welvys Bay deixou toda aquela
gente
arrasada. A maioria amava Angola, independentemente do partido que
ficasse a governar.
Disse também OMA que à chegada a Welvys Bay o navio não teve
ordem para atracar ao cais, e ficou ao largo, na baía, até que fossem
resolvidas todas as formalidades. Correu então entre os fugitivos a
notícia de que só os brancos iriam ter ordem para desembarcar, e que
todos os não brancos seriam recambiados para Angola, o que deixou todos em polvorosa, exigindo a presença do Consul de Portugal, até porque em Angola não havia apartheid, tendo
os elementos brancos se negado, em bloco, nestas circunstâncias, a desembarcar.
Seguem
alguns nomes daqueles que integraram este comboio de traineiras que
partiu de Porto Alexandre (Tombwa), a 10 de Janeiro de 1976, aos quais esperamos poder acrescentar muitos mais:
-Albérico de Sampaio Nunes e Ermelinda do Carmo Tendinha de Sampaio Nunes
-Maria de Lourdes Ilha Tendinha e Januário Tendinha (traineira Navegantes)
-Lourdino
Tendinha (Presidente da Câmara Municipal de Porto Alexandre) e esposa e
filhos, Eduardo Sena Tendinha, Lourdino Sena Tendinha e Humberto Sena
Tendinha
-João Faustino (Cunca), mulher e filho
-Rogério de Sousa e Glady's de Sampaio Nunes e Sousa
Mena (filha adoptiva de Lurdes Tendinha) e sogros (Traineira Navegantes)
(aguardam-se novos nomes)
E
assim chegou ao fim aquilo que ficará" na História como uma autêntica
"limpeza étnica"! Uma nova ordem mundial divisava-se no horizonte...
Como diria o grande Miguel Torga:
"
Fomos
descobrir o mundo em caravelas e regressámos em traineiras. A
fanfarronice de uns, a incapacidade de outros e a irresponsabilidade de
todos deu este resultado: o fim sem grandeza de uma grande aventura.
Metade de Portugal a ser o remorso da outra metade."