sábado, 29 de março de 2008

EM TÔRNO DE ALGUNS TÚMULOS AFRO-CRISTÃOS



 
 
 
EM TÔRNO DE ALGUNS TÚMULOS AFRO-CRISTÃOS [1]


PREFÁCIO
Era natural que percorrendo, como percorri, de 1951 a 1952, grande parte do Ultramar Português, atravessando, para atingi-lo no Oriente e na África, outras áreas tropicais ou quase tropicais - o Egito, a Arábia Saudita, o Paquistão, a União Indiana, o Senegal, as Rodésias, a África do Sul, a Libéria, o Congo Belga, que fiquei também conhecendo de perto - minhas observações de paisagens e populações, de costumes e estilos de vida, nesses países e nessas áreas, se processassem dentro da hipótese de trabalho que levantei no início da mesma viagem de estudo, em conferência proferida no Instituto de Goa. Essa hipótese de trabalho, eu a confirmaria - como critério de interpretação de um complexo binacional à base da evidência de constituírem o Brasil e os vários Portugais uma área de cultura em grande parte condicionada pela sua ecologia tropical - em conferência lida na Universidade de Coimbra - "Em tôrno de um novo conceito de tropicalismo" - após aquela longa, e para mim, proveitosa viagem.
No trabalho que se segue, recordo algumas das observações diretas de paisagens e populações luso-orientais e luso-africanas, que me levaram a sugerir a caracterização do mesmo complexo como complexo binacional de civilização, para o qual sugeri a denominação, inevitàvelmente pedante, de luso-tropical; e que - mais do que isto - me parece constituir base ou motivo para possível subciência. Subciência que, dentro de uma possível Tropicologia, geral, se denominasse Luso-tropicologia, tendo por ciência intermediária, uma também possível e até necessária Hispano-tropicologia. É uma sugestão, esta, que vem merecendo o apoio de antropólogos, sociólogos e ecologistas da Europa e dos Estados Unidos; e também do Brasil. Recentemente teve a aprovação de cientistas sociais de Oxford, Paris, Londres, Holanda, Bélgica, Itália, Portugal, Estados Unidos, assim como da África e do Oriente, reunidos na Europa em conclave de caráter estritamente científico, em tôrno de problemas de pluralismo étnico e cultural, sob os auspícios do Instituto Internacional de Civilizações Diferentes, com sede em Bruxelas.
A documentação fotográfica que recolhi no Oriente e na África - e parte da qual acompanha o texto do trabalho que se segue e é nele publicada com o maximo possivel de nitidez, graças ao Professor Pinto de Aguiar - recolhi-a dentro da preocupação de reunir material de valor comparativo para estudos do comportamento e da cultura dos vários grupos ou das diversas sociedades que, no Oriente, na África, na América, parecem constituir hoje o sugerido complexo luso-tropical; ou seja, uma comunidade luso-tropical caracterizada por um quase sistema de relações simbióticas de grupos étnico-culturais uns com os outros e de todos com o ambiente ou o meio tropical. Daí fotografias - que constam daquele material de viagem de estudo e algumas das quais são agora publicadas - sôbre os diferentes estilos que caracterizam o uso do pano à cabeça por mulheres do povo num arquipélago-síntese, como Cabo Verde: estilos que devem ser comparados com os ainda em uso no Brasil. Fotografias - nem sempre tècnicamente boas - do trajo de mulheres, cristãs ou não, da Índia que parecem ter tido influência sôbre o trajo de mulheres do povo de alta categoria em áreas luso-africanas como Moçambique e o Brasil; de tipos castiçamente indianos de palanquins dos quais se derivaram os brasileiros com suas variantes; do interior de tempos hindus, que visitei, e que me impressionaram como tendo talvez provocado nos Católicos o desejo de fazerem o interior de suas igrejas rivalizar com o desses templos - e superá-los - em fausto e pompa; de tipos de africanos em fase de assimilação do estado "primitivo" ao "civilizado", luso-tropical, africanos em transição cujos trajos talvez possam ser utilizados por continuadores do meu amigo Flávio de Carvalho, como sugestões para experimentos em tôrno do vestuario idealmente ecológico para o homem civilizado nos trópicos: vestuario que o Brasil está quase na obrigação de ser o primeiro povo a inventar, através de combinações inteligentes de estilos mestiços de indumentaria já desenvolvidos em areas de civilização luso-tropical. A tais fotografias acrescentei, na minha colheita de material antropologico durante aquela longa viagem de estudo, aquelas que me parecem ilustrar o modo por que portuguêses de hoje procuram dominar, pela técnica, desertos tropicais como o de Angola, servindo-se, em alguns casos, de experiência ou de experimentos brasileiros; e noutros, realizando obra pioneira de que os técnicos brasileiros precisam de inteirar-se. De qualquer modo, realizando obra caracterìsticamente luso-tropical pelo que continuam a juntar de lusitano a paisagens e culturas tropicais; pelo que continuam a conservar e desenvolver, dos nativos dos tropicos, de artes tanto das chamadas maiores como das denominadas menores, sob o aspecto de artes simbiòticamente lusotropicais. Dessas fotografias várias serão publicadas noutro trabalho, por se referiram menos a uma arte especifica, como é a do tumulo, que a experimentos de caráter não só artístico como científico que se vêm realizando naquelas áreas de civilização luto-tropical.
Êste aspecto de assunto tão complexo como é o conjunto que forma uma civilisação luso-tropical - a arte luso-tropical - foi aliás o tema de todo um curso em que, servindo-me através de projeções de documentário fotográfico quase de todo inédito, procurei considerar problemas de "Sociologia da Arte aplicada a situações luso-tropicais". Êsse curso realizou-se na Escola de Belas Artes da Universidade do Recife, no mês de outubro de 1957, por iniciativa do seu ilustre diretor, naquela época o Professor João Alfredo, com o apoio do então Magnífico Reitor Joaquim Amazonas, que presidiu a sua inauguração. Foi um curso em que se inscreveram 150 estudantes e foi por êles e por numerosos ouvintes seguido com o maior interêsse: interêsse provocado pelo tema. A êsse curso se seguiram novas conferências sôbre o assunto, estas proferidas na Escola de Teatro da Universidade da Bahia, em 1958, por iniciativa do seu Magnífico Reitor, o Professor Edgar Santos, e com a valiosa colaboração do diretor da mesma Escola, o Professor Martim Gonçalves; e também uma serie de conferências, igualmente ilustradas, proferidas no Museu de Arte de São Paulo, a primeira das quais presidida pelo Deputado Horacio Lafer que encareceu a coveniencia de ser a matéria versada pelo conferencista conhecida por um publico maior.
Daí outra iniciativa do Reitor Edgar Santos: a de publicar a Universidade da Bahia grande parte do material fotográfico e algumas das notas que venho reunindo sôbre temas luso-tropicais, do ponto de vista da Sociologia da Arte em particular, e da Antropologia ou da Sociologia Cultural, em geral - as que se referem aos túmulos afro-cristãos de Moçamedes - como edição da Imprensa Universitária da mesma Universidade da Bahia. Devo salientar que algumas das notas que se seguem foram lidas e algumas das fotografias, que as acompanham, exibidas, em conferências proferidas pelo autor no Instituto Joaquim Nabuco de Ciências Sociais, depois de terem sido objeto de pequena comunicação de caráter antropológico, em inglês, também acompanhada de ilustrações, sôbre túmulos afro-cristãos de Moçamedes, ao Professor Evans-Pritchard, o sábio catedrático de Antropologia da Universidade de Oxford, quando tive a honra de ser recebido por êle e pelos seus principais colaboradores, no Departamento de Antropologia da mesma Universidade, em maior de 1956. Outras notas e fotografias sôbre temas luso-tropicais da arte serão publicadas pelo Museu de Arte de São Paulo.
É claro que à observação de tais aspectos do comportamento português no Oriente e na África - os de interesse artistico - juntei o afã de procurar surpreender o modo lusitano de proceder com relação a orientais e africanos cristianizados e não-cristianizados. E creio ter encontrado confirmação para a sugestão de que é um modo de proceder sociòlogicamente mais cristocêntrico que etnocêntrico, em contraste, por exemplo, com o dos Protestantes holandeses, neste particular influenciados pela Igreja Holandesa Reformada.
Sto. Antônio de Apipucos (Recife), 1959.

EM TÔRNO DE ALGUNS TÚMULOS AFRO-CRISTÃOS DE UMA ÁREA AFRICANA

Um dos elementos que concorreram para a transculturação, de valores brasileiros em áreas ou entre populações africanas, através de agentes que do Brasil regressaram à África ou ainda aí se transferiam foi o colono português ou o brasileiro branco, proprietário de escravos no Brasil, ao deslocar-se do Basmera a África juntamente com êsses escravos - além de móveis de jacarandá, vasilhas de barro, rêdes do Ceará, balaios e cestas de feitio ameríndio, mudas de plantas, papagaios; ou apenas com idéias ou noções ou métodos, adquiridos na América Portuguêsa, de lidar com escravos, alojá-los em senzalas complementares de casas-grandes, alimentá-los, vesti-los, iniciá-los em capelas particulares ou em oratórios das mesmas casas, mas práticas, e ritos luso-Católicos, fazê-los trabalhar em lavouras tropicais, com objetivos europeus.
Houve vários casos dessa espécie - de transferência às vêzes como que global de colonos estabelecidos no Brasil para a África - entre os quais casos de brasileiros, filhos de portuguêses, e portuguêses casados com brasileiras de famílias antigas e de velhos habitos patriarcais-rurais ou patriarcais-agrários. Alguns dêsses portuguêses e brasileiros transferiram-se na primeira metade do século XIX de Pernambuco para Moçamedes. Aí se encontram em cemitério aristocrático, túmulos de estilo convencionalmente luso-Católico, de vários brasileiros, alguns de famílias fidalgamente rurais; e são vários os descendentes dêles, na população atual de Moçamedes.
Ainda hoje se encontram, também, nas "hortas" ou fazendas pequenas ou médias de descendentes de "brasileiros" naquela parte da Angola fortes traços de influência brasileira, não só sôbre a paisagem ou a vegetação africana - abrasileirada pela presença da mandioca, do tabaco, do cajueiro - como sôbre os estilos luso-africanos de vida, de economia e de comportamento. Inclusive o comportamento de serviçais africanos, alguns dêles continuadores de escravos africanos ou de descendentes de africanos que, ou acompanharam seus senhores na aventura de deixar o Brasil pela África, em face de surtos brasileiros de anti-lusismo; ou foram influenciados pelos métodos brasileiros de assimilação dos escravos a uma terceira cultura, nem européia nem ameríndia, porém luso-brasileira, com possibilidades de generalizar-se fàcilmente naquela cultura geral que venho denominando luso-tropical.
A generalização de cultura luso-brasileira em cultura luso-tropical ocorreu, com alguma freqüência, através de regressos quer involuntários - de escravos que acompanharam senhores do feitio dos que se estabeleceram em Moçamedes, em suas transferências do Brasil para outras áreas de colonização portuguêsa ou européia - quer voluntários: de ex-escravos ou de descendentes de escravos que se deslocaram do Brasil para essas outras áreas, maternalmente africanas, conservando-se, porém, com certo brio étnico-cultural, "brasileiros"; e não se deixando reintegrar de todo nas culturas ou sociedades maternas da África.
A situação dos descendentes dêsses "brasileiros" é assunto não apenas para pequeno ensaio, mas para obra extensa, longa e sistemática, em que se considere e estude o assunto nos seus vários aspectos socioculturais e psicossociais ou psicoculturais. Assunto complexo.
O que se poderá fazer, sob o critério de existir hoje uma cultura luso-tropical, particularmente favorável a subgrupos como os formados por tais "brasileiros" e por luso-indianos na África. São subgrupos que, fora dessa cultura - a luso-tropical - tendem a sentir-se mais ou menos desajustados ou "marginais", embora alguns individuos, membros dêsses subgrupos, tenham se tornado notáveis - mesmo como marginais - em subsistemas anglo-africanos e franco-africanos de cultura, depois de terem estudado - vários dêsses individuos - na própria Europa francesa ou inglêsa. A verdade, porém, é que raramente parecem desprender-se de todo de sua condição de luso-tropicais.
Em viagens de observação pela África, em 1951 e em 1952, procurei surpreender, com particular atenção, nas várias regiões que tive o gôsto de visitar, traços da presença dêsses "brasileiros". Os sinais de influência brasileira na paisagem, na economia, na cultura - cultura no sentido antropológico ou sociológico - de sociedades ou de áreas africanas, nem tôdas elas atualmente sob bandeira portuguêsa são por vezes evidentes.
Surpreendi vários dêsses traços, alargando assim o conhecimento de assunto há tempo entrevisto ou contemplado como tema ideal para uma pesquisa intensa e extensa. Na mesma época - 1951 - versei-o em nota prévia destinada ao grande público e publicada com excelentes fotografias de um companheiro francês de estudos afro-brasileiros, M. Pierre Verger, na revista O Cruzeiro, do Rio de Janeiro: notas que, ampliadas, constam da segunda edição de Problemas Brasileiros de Antropologia. E ainda agora lamento que não me tivesse acompanhado naquela viagem um Pierre Verger ou um Benício Whatley Dias ou um L, Cardoso Ayres, capazes de fixar em fotografias de valor científico para estudos antropológicos ou sociológicos, aspectos dessa transculturação interessantíssima. Ou - sob criterio mais lato - aspectos do à-vontade com que africanos ou descendentes de africanos, tocados no Brasil de influência luso-brasileira ou brasileira - que foi uma influência predominantemente européia e cristã em espaço tropical americano - mas não desafricanizados em motivos essenciais de vida, vêm dando expansão, na África, diretamente ou através de filhos, netos, bisnetos, tetranetos, ao seu estado cultural quase sempre intermediário, mas raras vêzes "marginal" no sentido cru de angustiado ou desprezado pelos grupos dominantes ou pelas culturas puras.
As fotografias que ilustram estas notas, sem serem - a não ser as que me foram gentilmente cedidas pela Agência Geral do Ultramar, de Lisboa, cujo arquivo é opulento - das que poderia nos ter dado, sôbre tema tão sugestivo, a arte-ciência de um Pierre Verger ou de Benício Whatley ou de um L. Cardoso Ayres, valem, entretanto, como primeira documentação fotográfica em tôrno de assunto que suponho estar ainda virgem de pesquisa verdadeiramente antropológica ou sociológica: os túmulos afro-cristãos de Moçamedes e as esculturas e pinturas afro-cristãs afins das que se encontram nesses túmulos, em contraste com as convencionalmente européias dos cemitérios ortodoxamente Católicos. Devo a maioria delas - para documentação desta simples nota prévia - à gentileza do Serviço de Publicidade da Província de Angola, cujo diretor me proporcionou a colaboração de um dos seus mais hábeis fotógrafos. Meus agradecimentos ao mesmo Serviço e ao fotógrafo que pacientemente me acompanhou em dias de sol intenso, em excursões que lhe devem ter parecido estranhas, não só pelas fazendas ou "hortas" como pelos cemitérios de Moçamedes; quer o Católico pròpriamente dito cheio de túmulos de brasileiros do Norte do Império que morreram luso-angolanos e cuja descendência é hoje luso-angolana ou lusitana, e aos quais se deve atribuir considerável importância como transmissores de brasileirismos à paisagem e à população, quer branca, quer de côr, do litoral da Angola - quer o que prefiro denominar "afro-cristão", a chamá-lo simplistamente "indígena", como é costume em certos meios mais requintadamente europeus da Angola. Às fotografias de túmulos dos dois cemitérios, um convencionalmente cristão e convencionalmente europeu em sua arte fúnebre e em sua simbologia do interêsse antropológico e de significado sociológico, outro, misto nessa arte e nessa simbologia, pareceu-me conveniente acrescentar fotografias de esculturas angolanas, quer apologética do Cristianismo, quer, a seu modo um tanto críticas do Cristianismo quando encarnado por puros europeus. São fotografias de esculturas que pude examinar de perto, na Exposição de Arte Sacra Missionária que, em 1951, se realizou em Lisboa, organizada, de modo admirável, pelo Diretor da Agência Geral do Ultramar, Dr. Banha da Silva, às quais estimaria juntar as de esculturas fúnebres, de remota influência cristã, que o diretor do Museu Etnográfico de Dundo, o Sr. José Redinha, vem reunindo nas suas coleções: excelentes coleções que marcam valioso serviço da Companhia dos Diamantes à ciência etnográfica ou antropológica. Aliás duas peças da pequena coleção particular de esculturas africanas que em Apipucos se junta aos meus também poucos objetos de arte ameríndia - poucos porém não de todo vulgares - devo-os à gentileza do etnólogo José Redinha. O Professor Melville J. Herskovits surpreendeu-se tanto de ver no Brasil tais esculturas africanas que as supôs cópias de originais, feitas para turistas ou diletantes.
Sem pretender fixar-me no aspecto pròpriamente histórico da migração interluso-tropical que representou, em 1849 e 1850, a transferência de dois grupos consideráveis de portuguêses e brasileiros, de Pernambuco para a Angola - acêrca do que se encontram, além da documentação esclarecedora incluída no livro de Manuel Júlio de Mendonça Tôrres, O Distrito de Moçamedes nas Fases da Origem e da Primeira Organização (1485-1859), documentos MSS no Arquivo da Câmara Municipal de Moçamedes, por mim examinados [2] - recordarei apenas, apoiado nessa documentação e na que vem sendo recolhida no Brasil pelo Professor J. A. Gonsalves de Melo, ter sido a mesma migração de elementos capazes e saudáveis e animados tão sòmente de sentimentos de repulsa aos exageros do nativismo então dominante entre alguns pernambucanos. Mendonça Tôrres, porém, deixa de ser inteiramente exato a respeito dêles quando afirma [3], terem os "colonos" que no meado do século XIX se transferiram do Norte do então Império brasileiro para a África, tornando em alguns anos Moçamedes "uma imagem viva e doce da Pátria", isto é, de Portugal, "pela introdução de usos e hábitos nacionais". A verdade é que êsses "colonos" introduziram em Moçamedes não apenas usos e costumes do Portugal europeu como do Brasil; e nessa obra de transculturação parecem ter sido auxiliados de modo nada desprezível pelos brasileiros, quer brancos - espôsas, filhos, parentes, etc. - que os acompanharam, quer pelos criados e serviçais. De alguns daqueles colonos sabe-se que se especializaram, como Bernardino de Figueiredo, em cultivar muito brasileiramente, em Moçamedes, algodão e cana de açúcar; e com tal sucesso que amostras de algodão da fazenda e do açúcar do engenho do mesmo Figueiredo figuraram em 1865 na Exposição Internacional do Pôrto. De modo igualmente brasileiro parecem ter se requintado êsse e outros "colonos", idos do Norte do Brasil, em receber com mesa lauta amigos e estranhos em suas casas-grandes de feitio patriarcalmente pernambucano: casas-grandes completadas por senzalas. Daí terem se tornado famosos os banquetes na casa-grande da Fazenda dos Cavaleiros, de propriedade de Figueiredo; e em visita há poucos anos a Moçamedes tive notícia de terem sido essas fazendas centros de irradiação não só da lavoura de algodão e da de açúcar, como de outras lavouras brasileiras, de alimentação e de gôzo; e de costumes e ritos luso-brasileiros de agricultura e de vida rural.
Êste o ambiente que parece ter concorrido para animar em africanos cristãos de Moçamedes o desejo, que realizaram, de ter cemitério próprio. E de edificarem aí túmulos em que se projeta sua situação de subgrupo de cultura intermediária, isto é, já cristã e européia, mas ainda africana e animista. É para essa cultura - para a sua complexidade - que parece ter concorrido o contacto particularmente intenso do mesmo subgrupo de população luso-africana com o Brasil, do qual se transferiram para Moçamedes valores e estilos de convivência ainda hoje visíveis nessa subárea luso-angolana.
Uma das expressões mais dignas de estudo da situação intermediária de cultura - cultura afro-cristã - característica de considerável subgrupo da população de Moçamedes, repita-se que é a que se nota naquele cemitério a um tempo cristão e africano, em cujos túmulos, aos símbolos cristãos se juntam, com valor simbólico ora menos, ora mais evidente, não só desenhos de traço africano como urnas e receptáculos destinados menos a flôres, dentro do ritual cristão de culto aos mortos, que a ofertas de outro gênero - alimento, inclusive - como em rituais fúnebres africanos. Talvez o referido cemitério seja, neste particular, uma das expressões biculturais mais interessantes que hoje se encontram em qualquer parte.
Do ponto de vista artístico, os túmulos afro-cristãos de Moçamedes lembram, de modo nítido, com suas pinturas e esculturas coloridas, seus azues e seus vermelhos vivos, desenhos e pinturas do artista brasileiro Cícero Dias, parecendo essa semelhança favorecer a opinião dos que enxergam influência africana na arte dêsse pintor nascido em casa-grande de Pernambuco e criado sob sugestões e influências de serviçais de côr, continuadores, sob vários aspectos do seu comportamento e da sua cultura, de escravos africanos ou de origem africana, outrora parte essencial das casas-grandes patriarcais de engenho, fazenda e sítio do Brasil. Lembram também pinturas de Lula Cardoso Ayres, da fase em que êsse pintor estêve mais próximo das formas e côres da cerâmica popular do interior agrário de Pernambuco e da representação da figura humana nessa cerâmica por vêzes pintada. A presença de vermelhos e azues, de amarelos e verdes nos túmulos afro-cristãos de Moçamedes, contrasta com a brancura caracteristica dos jazigos do Cemitério europeu e Catolico da mesma cidade, fazendo-nos pensar na revolta do sociologo brasileiro Professor Guerreiro Ramos, numa das paginas do seu "O Negro desde dentro", capitulo de Introdução critica á sociologia brasileira, contra "a brancura como simbolo do excelso" e até do santo ou do sagrado. Concepção que, incluindo a própria ideia ou imagem de Deus - um Deus em branco - é pelo mesmo sociologo associado à concepção do sagrado de povos brancos impostas a gentes de côr. O Cemitério afro-cristão de Moçamedes não prima pela brancura dos seus túmulos mas afasta-se dessa convenção europeia juntando a símbolos de fé cristã côres vivas, nas quais se exprime uma concepção do sagrado diferente da europeia. Diferente da europeia mas não propriamente anti-cristã ou anti-Católica.
É possível que, se aos descendentes cristianizados de escravos africanos tivesse sido dada, no Brasil, a oportunidade de levantar seus próprios túmulos, as formas e côres decorativas e algumas simbólicas e talvez rituais dêsses túmulos rústicos, espontâneos e, a seu modo, barrocos, houvessem se desenvolvido de modo semelhante às dos túmulos do cemitério afro-cristão de Moçamedes. Como é possível que alguns dos túmulos afro-cristãos de Moçamedes acusem influências brasileiras sôbre a população africana daquela área. Influência que houve noutros planos - como, por exemplo, sôbre a arquitetura e a alimentação, quer de brancos, quer de pretos e pardos ou mestiços - e chegou a ser considerável, exercida como foi, não só por portuguêses da Europa e negros da África, que se transfeririam do Brasil para a África, ou a ela regressaram, como por brasileiros nates, alguns de famílias já rural e telúricamente brasileiras, que acompanharam pais, esposos, sogros e outros parentes portuguêses, em sua aventura de transferência total do Brasil para Moçamedes.
Lembram também os túmulos afro-cristãos de Moçamedes pinturas e esculturas populares brasileiras: de zonas do Brasil mais marcadas pela influência africana. Pinturas de baús, ex-votos, tabuletas comerciais, bandeiras de santos, estandartes de clubes de carnaval. Lembram esculturas pintadas, santos e madonas rústicas, esculpidas por santeiros brasileiros. Isto tanto no traço como nas predominâncias de côres.
Note-se, ainda, que as esculturas nos túmulos afro-cristãos de Moçamedes parecem confirmar, sob alguns aspectos, a sugestão de Ladislas Zzecsi, nas suas notas "The Term "Negro Art" is essentially a non-African concept", de que as figuras de escultura negra tidas por arte intencional ou deliberada por alguns intérpretes europeus, não são criadas pelos supostos artistas com outra intenção senão a religiosa. O que o suposto artista deseja é dar abrigo nessas esculturas ao espírito do seu antepassado. Êle esculpe "for the purpose of housing the spirit of his ancestor, who might thus return do guard the members of his family" [4]. (4)
Observa o mesmo autor a constância de formas tribais nos diferentes estilos de arte de escultura entre os negros africanos. Essa constância sobreviveria a outras assimilações: de língua e de costumes.
No caso das esculturas afro-cristãs dos túmulos do cemitério de Moçamedes, motivo principal destas notas à margem dessa e de outras influências brasileira na paisagem, na economia e na cultura de subáreas luso-africanas de Angola, parece exprimir-se aquela constância de formas africanas tribais. Parecem algumas das esculturas naqueles túmulos, simbolizar estilizadamente, espíritos de antepassados, evocados menos em suas semelhanças de fisionomia individual ou mesmo familial que étnica; e menos em traços étnicos que através de insígnias dos seus ofícios e sobretudo - elemento novo, europeu, tanto quanto possível harmonizado com os antigos de sua nova fé ou religião - a de insígnias cristãs, na sua expressão Católica, Apostólica, Romana. Por conseguinte, através de símbolos como a Cruz, o Cristo na cruz, a Madona com o Menino Jesus. Isto, talvez, dentro de já antiga tradição vinda de dias remotos da colonização portuguêsa da África.
Observe-se de algumas das populações da área luso-angolana que, como as populações do Congo, vêm sofrendo em sua cultura - inclusive em sua arte - influência portuguêsa desde o século XVI: antes mesmo dessa influência ter-se tornado luso-brasileira, através dos muitos contactos que se desenvolveram entre a Angola e o Brasil. Em seu "Essay on Styles in the Statuary or the Congo", publicado na Negro Anthology, organizada por Nancy Cunard e publicada em Londres em 1934, é o que destaca o belga Henri Lavachery, dos Reais Museus de Arte e História da Bélgica: que no litoral do Congo Belga e da Angola "a realism of ancient importation continues to be manifest in the heads of sculptured figures" em contraste com "the bodies of the big village charms and famous studded fetiches" que "are all too frequently characterized by the grossest formalism". Êste contraste se encontra de modo menos agudo nas esculturas dos túmulos luso-cristãos de Moçamedes, num dos quais parece confirmar-se outra generalização do observador belga relativa ao enclave português de Cabinda: "certain articles of the 16th century Portuguese attire were still the fashion" até data relativamente recente. Aí, "it was the habit of certain artists, in the absence of the living model, to surround the heads of their figures with coiffures of a most phantastic and decorative art" [5]. Na Angola notam-se arcaísmos de trajo de gala, que acusam influência portuguêsa remota, quer entre viúvas, quer entre pescadores de Luanda, por exemplo; e dêsses arcaísmos de trajo pareceu-me haver traços em certas figuras esculpidas em túmulos afro-cristãos de Moçamedes. É aspecto que pede estudo mais demorado e minucioso.
Os símbolos de trabalho das pessoas falecidas, nos túmulos afro-cristãos de Moçamedes, talvez correspondam ao rito, dominante entre sociedades africanas da África Ocidental, de deverem ser tais pessoas acompanhadas no seu sepultamento de sinais ou insígnias de sua posição. Como observou o Professor K. L. Little da Universidade de Edimburgo, no seu excelente The Mende of Sierra Leone, a west African People in Transition [6], na sociedade por êle estudada em fase de transição, não só "the deseased should be sent on his way with ceremonies appropriate to his earthly rank" mas "he should also cay with him some token of his position". E o Professor Meyer Fortes, em The Web of Kinship among the Tallensi [7], já destacara que entre os Tallensi - "typical of the great congeries of Mole-Dagbanespeaking peoples that occupy the Northern Territories of the Gold Coast" e que constituem "a completly homogenous community of sedentary farmers" - "a person's status is most conspicuously proclaimed at his or her death. . ."
Aqui é que parece ter se integrado de modo sociològicamente interessante a projeção de um rito africano numa arte ritual cristã como é a do túmulo de pedra que, por sua vez, se presta à expressão de uma arte africana a serviço, quase sempre, entre negros africanos, de motivos ou objetivos religiosos e rituais, social ou tribalmente simbólicos: a escultura. A escultura fúnebre às vêzes completada pela pintura que pelas côres avive intenções simbólicas, em vez de serem côres simplesmente decorativas.
Quanto ao fato das urnas junto aos túmulos afro-cristãos de Moçamedes poderem ser utilizadas para outras homenagens ou ofertas à memória ou ao espírito dos mortos, além das flôres - segundo o rito cristão - tal possibilidade se conciliaria com a crença, comum a várias sociedades africanas da África Ocidental, de que tais espíritos retêm, como lembra o já referido sociólogo e antropólogo inglês, Professor Little, "their anthropomorfic character". Mais: "an ancestor's status lasts as long as the dead are remembered. . .". E os túmulos são por algumas dessas sociedades identificados com as casas ou as habitações humanas, de modo semelhante ao que sucede entre cristãos, podendo-se assim verificar, em tôrno dessa crença comum a sociedades predominantemente agrárias e sedentárias nos seus sistemas de economia e nos seus principais motivos de vida, manifestações de zêlo por êsses mesmos túmulos, e em tôrno do que elas simbolizam, também aparentemente comuns; e nas quais se confunda o sentido da homenagem africana - a palavra "homenagem" vai aqui empregada com o sentido antes sugestivo que exatamente descritivo - de caráter ainda animista com a da homenagem cristã de caráter espiritualista. A mesma confusão pode ocorrer entre o culto à Virgem Maria - Mãe de Deus, de Jesus, dos Homens - culto que me pareceu um dos característicos mais cristãos das esculturas do Cemitério Afro-cristão de Moçamedes - e reminiscências, porventura persistentes entre os afro-cristãos dessa subárea, da identificação matrilineal de vivos e mortos com a Mãe: identificação de que fala o Professor Meyer Fortes, noutro dos seus trabalhos de Antropologia social, baseado em pesquisa de campo na África: The Dynamics of Clanship among the Tallonsi [8].
Em indagações realizadas para trabalho de colaboração com o autor destas notas sôbre descendentes de africanos e africanos que regressaram do Brasil à África no tempo da escravidão no Brasil patriarcal, o pesquisador francês Pierre Verger constatou a transformação, entre grupos de "brasileiros" por êle estudados mais de perto, do culto baiano de Nosso Senhor do Bonfim no de Nossa Senhora do Bonfim. No Cemitério afro-cristão de Moçamedes o culto cristão à Mãe de Deus parece ser associado ao culto aos mortos, nas esculturas sôbre seus túmulos, como um pendor para êsse culto que se assemelha, talvez, ao que resultou naquela transformação do culto baiano do Senhor - isto é, do Pai - num culto afro-brasileiro, de origem baiana, da Mãe, sob a figura de Nossa Senhora do Bonfim.
Parece-me que é pela sua confusão de símbolos que o Cemitério afro-cristão de Moçamedes - subárea angolana particularmente tocada (repita-se) por influência brasileira - melhor se apresenta como tema antropológico rico de sugestões. Diante dêsses símbolos assim biculturais, em conciliações ou confusões significativas em mais de um sentido - o estético e o político-social - em tôrno do culto dos mortos, parecem adquirir particular significação as palavras com que, em seu inteligente artigo sôbre "Symbolism", para a Encyclopaedia of Social Sciences [9], Edward Sapir escreveu com a penetração característica da sua inteligência: "It is important to observe that symbolic meanings can often be recognized clearly for the first time when symbolic value, generally inconscious or conscious only in a marginal sense, drops out of a socialized pattern of behavior and of the supposed function. . .".
Nessa situação de símbolos em processo de serem desencarnados dos objetos de suas funções, mas ainda não de todo mortos como formas de etiquêta, é que talvez se encontrem os símbolos africanos de caráter tribal que persistem em associar-se, em túmulos afro-cristãos de Moçamedes, aos puros símbolos cristãos ou Católicos. Neste caso êles se apresentariam como "conscious only in a marginal sense", para usarmos a expressão de Sapir. Sua validade deixaria de corresponder aos motivos religiosos básicos de sua primitiva forma tribal e complexa para apenas anunciarem o status pessoal de maneira inteligível a olhos de africanos ainda impregnados de cultura tribal; ou de suas sobrevivências que, em situações socioculturais como as luso-tropicais, são muitas vêzes sobrevivências permitidas ou toleradas de fato, embora oficial ou teòricamente repudiadas, por autoridades eclesiásticas ou civís mais zelosas da ortodoxia cristã e da uniformidade européia de comportamento: inclusive de etiquêta.
Não é absurdo admitir-se que o estudo minucioso, seja dos ritos fúnebres - inclusive da arte dos túmulos e do culto aos mortos ligado a essa arte - seja de outras formas de etiquêta e de simbologia social entre os afro-cristãos de Moçamedes, venha a revelar a presença, nesses ritos ou forma e na arte daqueles túmulos, de traços de cultura brasileira, adquiridos quer impessoalmente, quer através de pessoas ou de personalidades marcantes de origem ou formação brasileira ou mestiça: afro-brasileira.
O antropólogo Paul Radin, ao estudar ritos fúnebres entre os Winnebago - material que anos depois de recolhido viria a apresentar num livro que ao interêsse científico junta o literário ou poético: The Road to Life and Death. A Ritual Drama of the American Indians [10] - verificou a presença, nos mesmos ritos, de traços de influência cristã indireta. Para o que encontrou evidência semi-histórica em narrativa referente à participação de certo mestiço franco-ameríndio no desenvolvimento do drama ritual dos mesmos Winnebago no sentido do encontro ou da síntese das duas culturas: a Winnebago e a européia cristã. Dessa participação. Radin diz ter correspondido à "need of a new religious and philosophical synthesis" [11], experimentada pelos Winnebago.
Necessidade semelhante parece ter sido experimentada pelos afro-cristãos de Moçamedes: sobretudo os que se encontraram no século XIX em maior contacto com a cultura afro-brasileira mais penetrada pelo Cristianismo ou pelo Catolicísmo. Os túmulos do Cemitério afro-cristão talvez devam ser considerados principalmente isto: resposta, ou tentativa de resposta, sob forma artística, ao que deve ter se extremado entre alguns daqueles elementos afro-cristãos da população de Moçamedes no que Radin chamaria "the poignant needs of a people facing a soul-trying ordeal".
N o t a s
1 Publicado em Lisboa, 1950. [voltar]
2 Segundo cópia extraída do livro MS "Annaes do Município de Mossamedes", de fls. 1 a 3-V, Annos de 1839 a 1849, especialmente para servir de informação ao autor deste ensaio - gentileza que devo ao chefe da Secretaria de Câmara Municipal de Moçamedes, Sr. Artur Trindade - "Mossamedes cuja bahia foi denominada - Angra do Negro - pelos nossos Navegadôres, foi mandada vezitar pelo Capital General d'Angola Barão de Mossamedes, cuja comissão foi incumbida ao Capitão Mór de Benguella que aqui veio com forças por terra, e a este facto deve a sua denominação. Embora a dacta do seu descobrimento seja muito antiga, o princípio de sua povoação dacta de 1939. Neste anno veio de Banguella a Quillengues, e de aqui a Huilla, Jau, e depois a Mossamedes o Tenente de Artilheiria João Francisco Garcia, onde já achou fundeada no porto a Corveta Izabel Maria commandada por Pedro Alexandrino da Cunha Garcia vinha nomeado Regente. Já então existia no local que hoje se chama - Hortas - huma feitoria bem montada pertencente a Jacomo Fellipe Torres, de Benguella, administrada por hum homem de sobrenome Guimarães, que fazia muito negócio, e se achava acreditada com o gentio, o que lhe accarretou tal perseguição que foi prezo na mesma Corveta para Loanda roubando-se-lhe e destruindo a feitoria. Jacomo protestou contra a violencia, e obteve justiça, mas não reparação. Apezar deste accontecimento ainda assim veio em 1840 Clemente Eleutherio Freire montar outra feitoria de sociedade sociedade com D. Anna Ubertal de Loanda, e em 1843 veio pois veio João Antônio de Magalhães estabelecer outra feitoria de sociedade com Augusto Garrido; porem de todas estas feitorias so existe hoje a de Fernanda, por se ter fundado na pesca e dedicado também à cultura. Começou pois esta povoação por hum presidio em que alem da força millitar e degredados se estabelecêrão algumas feitorias, e d'entre alguns de seus administradôres taes como Fernanda e Freire; bem como o Tenente de Marinha A. S. De Souza Soares de Andreas, e Commandante do Brigue "Tejo", e sua guarnição foi que nascerão os primeiros ensaios da Agricultura. A força de vegetação que se conheceo em algumas sementes lançadas à terra, a descripção feita por alguns officiaes de Marinha; e a benignidade do clima fizerão suscitar a idea da colonização deste local por gente não degredada. Os partidos politicos do Brazil, principalmente em Pernambuco, tendo sempre por fim a maior ou menor perseguição aos Portuguezes alli residentes desgostarão estes, e muito concorreo tal perseguição para fornecer a idea de colonizar Mossamedes; as expozições que de Pernambuco se fizerão para o Governo Portuguez sendo acolhidas, este deu providencias para se transportarem colonos Portuguezes do Brazil para Mossamedes. Em Maio de 1849 sahirão o Brigue Douro e a Barca Tentativa Feliz da barra de Pernambuco; e em 4 de Agosto do mesmo ano chegarão a Mossamedes transportando famillias e homens solteiros de todas as classes e idades; sendo todas as despezas feitas à custa do Governo ( Ate aqui seguimos huma memoria fornecida a esta Câmara pelo cidadão Bernardino Freire de Figueiredo Abreu e Castro, a qual por sêr bastante extensa deixamos de transcrever; e continuaremos a approveitar d'ella o que julgar-mos necessário e util. A ditta memoria acha-se archivada n'esta Camara, onde pode ser consultada). Em 13 de Outubro de 1850 huma outra expedição deixava as agoas de Pernambuco a bordo do Brigue Douro, e da Barca Bracharense que se denominou segunda colónia; cujo transporte e despezas forão feitas à custa de huma subscripção Portugueza, e que apezar das notícias a drede espalhadas por meio de carta hidas de Massamedes na "Escuna Maria" que fazião huma descripção miseravel, e infelizmente verdadeira naquella epoca, deste estabelecimento, não deixou de ser numeroza; aportando a Mossamedes a 26 de Novembro do ditto anno. Estes segundos colonos que deixando Pernambuco em hum estado mais calmo do que aquelle em que deixarão os primeiros de seus compatriotas, e que por conseguinte vivião já em melhor tranquilidade vierão achar aquelles em hum estado deploravel, e faltos de animo. Huma esterilidade espantoza motivada pela secca; pessimo sustento composto de má farinha de mandioca, feijão pôdre, etc. Huma nudez quazi completa, e finalmente hum completo exaspêro, a ponto de muitos se julgarem felizes com a praça que se lhe assentava em recompensa de tantas privações! Quinze mezes erão passados, e nesta epoca de esterilidade que poderia fazer-se? Alem da secca, faltavão sementes; o directôr da colonia foi a Loanda levando em sua companhia hum colono (Francisco da Maia Barreto); este foi ao Bengo, e de alli trouxe as primeiras sementes de cana, maniva etc., e pouco antes da chegada destas chegárão algumas sementes ao cidadão Fernando Joze Cardozo Guimarães que forão plantadas (a canna) sob a direcção do colono Joze de Albuquerque na horta daquelle senhôr, e foi d'estas sementes que se crearão viveiros para os annos fucturos. Foi ainda nesta epoca de verdadeira calamidade que chegárão mais colonos do Rio de Janeiro, e Bahia, dos quais ficárão mui poucos por falta de recursos; entre os desta ultima cidade alguns vinhão que trazião capitaes e querião ficar para negociar, o que não seria pequena vantagem; infelizmente fôrão disso despersuadidos. A este facto, e ao de terem-se escripto d'aqui pessimas noticias para o Brazil se deve o não terem continuado a aportar aqui colonos vindos à sua custa; - mas como virião elles se para alli se escrevia dizendo-o clima é pessimo - he um lugar de degredados onde sômos tractados como taes ( e em parte havia razão para o dizer) - he peor que na Ilha de Fernando de Noronha - não nos deixão de aqui sahir sem completar 10 annos - e outras muitas couzas? Dizemos que em parte tinhão razão por que a mortandade foi espantoza nos primeiros dois annos: Colono houve que foi 10 e 15 vezes ao Hospital em hum anno, donde sahia como entrava por falta de tratamento! Como não seria grande a mortandade se pessoas que habituadas a hum tratamento regular vivião agora a meia ração, e esta muitas vezes damnificada? Se hum lugar pouco salubre como o Bumbo em quanto que a chuva cahia a jorros se achavão miseros infelizes debaixo de alguns ramos aquentando-se a huma fogueira sem roupa para cobrir-se, por que muitos a deixarão no Estabelecimento por falta de conductôres quando para alli fôrão; tendo tido huma penosa viagem a pé por caminhos quazi intranzitaveis sem poder suportar o calôr de huma areia quazi ardente? Examine-se um pequeno numero de artistas e outras pessoas, que puderão sustentar-se com hum alimento mais saudável, e que não passarão essas privações, e vêr-se la que não tiverão até hoje huma baixa ao Hospital, e alguns dos quaes no decurso de seis annos não sofrêrão ainda huma intermittente; e examine-se tambem essas pessoas que aqui chegão do Reino ou do Brazil, e que não soffrem essas privações; veja-se a sua robustez, e conhecer-se ha esta verdade. Foi em consequência dessas privações que alguns colonos fugirão da Huilla, e que hum melhor futuro fez volver ou trazer a Mossamedes, porque desde o momento que os colonos podérão sustentar-se à sua custa, desaparecêrão essas molestias, e Mossamedes de hoje (1870?) he hum Paraizo comparada ao de 1850. Se nos demorarmos em mencionar este facto he porque julgamos de interesse e seu conhecimento no fucturo; he porque sômos Portuguezes, e desejamos que se saiba no Brasil, em Portugal, e se possivel fôr em todo o mundo, que o clima de Mossamedes he melhór do que o de toda a Africa; superior ao de todo o Brazil; superiôr ao de muitos lugares de Portugal, e quazi igual ao melhor e mais temperado deste ultimo paiz; e desejamos emfim que se desvaneção esses restos de receio de vir aqui habitar; porque só assim e com hum governo poderemos prosperar; e para prova do que acabamos de dizer deste clima salutar examine-se ainda essas crianças nascidas e creadas aqui; a sua robustez, e sobre tudo essa côr purpurina de suas faces, huma grande parte das quaes vive continuamente exposta aos raios abrazadôres do sol!".
Segundo cópia extraída do livro "ANNAES DO MUNICIPIO DE MOSSAMEDES", DE FLS. 41 E 41-V, ANNOS de 1839 A 1856, é o seguinte o "REZUMO DOS FOGOS, POPULAÇÃO, E PREDIOS URBANOS, CONCLUIDOS E EM CONSTRUCÇÃO NA VILLA, E ARREBALDES, ATE AO FIM DO ANNO DE 1856", isto é, sete anos depois da chegada à África dos primeiros "brasileiros";
FOGOS
Na Villa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
No local das Hortas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
Na Bôa Esperança. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
Na Bôa Vista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2
Nos Cavalleiros e Macalla. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3
Total 85

POPULAÇÃO LIVRE
Sexo masculino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 164
Ditto femenino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .108
Total 272

POPULAÇÃO ESCRAVA
Sexo masculino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .475
Ditto femenino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .157
Total 632
54 Libertos do dois sexos.

PRÉDIOS CONCLUIDOS
Na Villa
De pedra. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .36
De adobe. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . 8
De pau a pique. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
Cubatas de palha. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .10 76
Nas Hortas e Aguada
De adobe.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6
Cubatas de palha e pau a pique.. . . . . . . . . . . . . . . . . .. 4 10
Na Boa Esperança
De adobe. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 20
De pau a pique. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 27
Boa Vista
De adobe. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . - 2
Nos Cavalleiros e Macalla
De pedra. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
De adobe. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . 2 3

PRÉDIOS EM CONSTRUÇÃO
Na Villa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .12
Nas Hortas... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2
Na Boa Esperança. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 19
Engenhos
Nos Cavalleiros (montado). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1

Ao que se deve acrescentar o seguinte "REZUMO DOS PRODUCTOS AGRICOLAS DURANTE O ANNO DE 1856":
Assucar 178 As Vendeu-se de 7.200 a 9.000 Rs. a. a.
Algodão 1.672 As. Regulou 600 reis por a. em carôço
Aguardente 41 ½ pipas Em todo o Districto

Aboboras 400 Somente de hum arimo
Batatas 5.405 As. Pode avaliar-se em mais um têrço
Bananas 400 cachos Somente de um arimo
Cará 4.247 As. Pode avaliar-se em mais um têrço
;Canna sacha 14 milheiros Regulou 20$ reis o milheiro
Farª de mandioca 8:170 Cazungueis. Pode avaliar-se em mais um têrço
Feijão 128 Dittos
Milho 813 Dittos
Azeite de carrapata Peqª quantidade
Hortaliças - grande quantidade"

E, ainda, êste, de "PRODUCTOS DE INDUSTRIA":
"Carne secca 612 as. Só em um estabelecimento e até agosto
Couros de boi 112 Só em um estabelecimento e até agosto
Peixe secco 12.600 Mattetes - Maior quantidade
Azeite de cação 206 pipas Ditto. . .ditto
Tijollo. . . . . . . . . 21 milheiros
Cal. . . . . . . . . . . . . 56 moiosAdobe. . . . . . . . . . 60 milheiros"

"Também êstes informes, que foram extraídos de livros MSS, hoje do arquivo da Câmara Municipal, devemo-los à gentileza do chefe da Secretaria da mesma Câmara, Sr. Artur Trindade".
São vários os amigos portuguêses do Oriente e da África a quem devo agradecimentos pelo modo por que me facilitaram a colheita de documentos e fotografias sôbre êste e outros assuntos luso-tropicais, afins do versado neste pequeno ensaio.
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3 Manuel Júlio Mendonça Torres - O Distrito de Moçamedes nas fases da Origem e da Primeira Organização, (1485 - 1859), Lisboa 1950, pag. 511 [voltar]
4 Negro Anthology, organizada por Nancy Cunard, Londres 1934, pag. 679. [voltar]
5 Negro Anthology, cit., pag. 688. [voltar]
6Londres, 1951, Pag. 137. [voltar]
7 Londres, Nova Iorque e Toronto, 1949, pag. 55. [voltar]

Fonte: FREYRE. Gilberto. Em tôrno de alguns túmulos afro-cristãos. Salvador: Livraria Progresso; Editora e Universidade da Bahia, [1959]. 88p. il. (Coleção de estudos brasileiros. Série Marajoara, n.26).

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