(*) Requerimento
Diz a História que o jovem António Joaquim Guimarães Júnior foi
o fundador, em 1839, da 1ª feitoria, a par do recentemente formado
"Estabelecimento Prisional de Mossâmedes", onde não existiam relações
comerciais com os gentios do sertão do sul, de modo a tornar efectiva a
presença de Portugal.
Aliás,
a iniciativa teria partido do próprio Guimarães, como ele mesmo afirma.
Tinha apenas 20 anos quando fez chegar à Secretaria do Ultramar um
requerimento e obteve os meios necessários para a realização de tal
empresa, em que se oferecia para montar em Moçâmedes, no sul de Angola,
uma indústria de charqueação (carne salgada e seca) e de cortumes,
além do comércio usual daquela província, isto é, a troca de cera,
marfim, gomma copal, urzella & c., "por fazendas, missanga, e
géneros do agrado daqueles povos de vida pastoril, que possuíam grande
quantidade de gados vaccum, e ovelhum."
Considerava-se
então que convinha desenvolver um ramo novo da indústria, porquanto
Guimarães Júnior encontraria consumidores para os seus produtos nas
embarcações do Estado provenientes da Ásia e que em Moçâmedes podiam
abastecer-se, para além de que a Ilha de St.a Helena, onde estacionavam
baleeiros vindos da América e dedicados à pesca da baleia nos mares da
Baía dos Tigres, distava apenas oito dias de viagem.
Moçâmedes
inaugurava assim um novo paradigma colonial, que teve na sua origem,
sem dúvida, ideais iluministas de igualdade liberdade e fraternidade,
veiculados pela Revolução Francesa (1789), que tinham mudado o quadro
mental europeu, levaram no Portugal metropolitano levando às invasões francesas (1807-119, à
revolução de 1820, à independência do Brasil (1822), à queda do
absolutismo monárquico e triunfo do liberalismo (1834), e à abolição do
tráfico de escravos para o Brasil e Américas, (1836), e
proporcionaram um novo olhar na direcção das colónias africanas,
secularmente estagnadas, sobretudo para Angola, a nova Jóia da corôa,
pelas riquezas por explorar que guardava o seu solo e subsolo.
Portugal tinha que enveredar para a ocupação efectiva e para o
progresso da colónia, agora abrangendo colonos que até então estavam
ausentes, mas também autóctones que deveriam não mais ser traficados
para o Brasil, mas levados a trabalhar para o desenvolvimento económico, mas também atrair possíveis investidores de capitais.
Por
essa altura Pedro Alexandrino da Cunha tinha sido escolhido pelo
Governador e Vice Almirante Manuel António de Noronha, para chefe da
estação naval de Luanda, competindo-lhe vigiar os embarques de escravos
entre Molembo e Luanda. Pedro Alexandrino da Cunha e António Joaquim Guimarães Júnior
iam ambos explorar a costa ao sul de Benguela, o primeiro como
geógrafo e roteirista, o segundo como comerciante, estudando a
probabilidade de se instalar na costa a sul de Benguela feitorias
comerciais, e aportaram em 22 de Setembro de 1839, na velha "Manga das
Areias", Baia dos Tigres, derivando em seguida para Moçâmedes. Do mesmo
empreendimento fez parte o tenente Gregório José Garcia, nomeado em
1840 comandante do novo estabelecimento da Baía de Moçâmedes, o Forte
de S. Fernando, que deveria para ali dirigir-se por terra e o
juntar-se a Alexandrino da Cunha e a Guimarães, conforme "Memória
Sobre a Exploração da Costa Sul de Benguela na África Ocidental e
Fundação do Primeiro Estabelecimento Comercial na Baía de Mossâmedes",
da autoria de Guimarães publicada em Lisboa no ano de 1842. Garcia
depressa iria incompatibizar-se com Guimarães, cuja feitoria acabaria
incendiada, e completamente destruída. Mas a este respeito, saber os
porquês, teria que nos levar a novas e aprofundadas pesquisas que
envolvessem o jovem investidor que caíra de imediato no agrado dos sobas
da região, Quipola e Giraúlo. Guimarães, que ficou conhecido como o
"Gato com Botas", bem como o local do seu estabelecimento, aponta no
livro que deixou para a posteridade para as ambições pessoais do Comandante do novo estabelecimento.
Segue,
no respeito da escrita da época, parte do relato da entrada da corveta
"Isabel Maria" na baía de Moçâmedes, onde tiveram que se confrontar
com um "banco" de areia que atrapalhava a navegação. A parte da Memória
aqui descrita, em nada foi alterada, para que não se perca uma "gota"
deste impressionante relato que nos mostra aquilo que era a Moçâmedes
nesse tempo: nada, absolutamente nada, apenas um areal desértico junto
ao mar, banhado por um rio seco a maior parte do ano, o rio Bero, mas
suficiente para que a vida ali se tornasse possível... Isto, porque
retinha água no solo e no sub-solo, quando na época das chuvas as
água das enxurradas invadirem as margens, e levava consigo
fertilizantes naturais para novas sementeiras, gerando uma espécie de
microclima temperado que mais tarde faria das "Hortas" verdadeiros
oásis.
"...Foi
então que em menos de quarenta e oito horas avistámos a bahia de
Mossâmedes, duvidando porém se seria ella, posto que todos os indícios,
que a distancia nos deixava perceber, combinassem com a ideia que eu
fazia d'este logar, e como erão já cinco horas da tarde, o Commandante
resolveo fazer-se ao largo, e vir no dia seguinte reconhecer a terra,
lembrança que me pareceo muito ajuizada e prudente, pois que estando
tão próximos d'uma costa para nós inteiramente desconhecida, muitos
erão os perigos a que podíamos estar sujeitos, e tanto mais , quanto se
nos aprezentava um baixo em que o mar rebentava com muita força, e o
qual, projectado como se achava, parecia fecharnos a entrada da bahia,
que duas mui notáveis pontas deixavão formada, e que mostrava não ser
piquena e alem disso o fumo que distinctamene viamos, nos denunciava a
existencia d'habitantes n'aquelle ponto.
(...)
...
Era na realidade um espectáculo para mim bem singular a minha recepção
naquella. bahia, pois que além de diversos cumprimentos e ceremonias
extravagantes do seu uso, mandou o Soba fazer pela sua gente.uma especie
de telheiro de ramos para me abrigar do sol, e debaixo mandou estender
uma esteira, onde me convidou a sentar, colocando-se elle defronte de
mim. Então lhe fiz vêr que nós só pertendiamos a sua amizade, e. que
não erao nossas intenções outras, senão trocar as muitas fazendas e
generos que possuíamos , por marfim , cera, gado, urzella ; que o
trataríamos sempre muito bem, e que só delle solicitava o consentimento
de fazer uma casa, onde se recolhessem as muitas cousas que
pertendiamos conduzir para ali. A estas proposições simplesmente
retribuio, que me responderia no dia seguinte, mui naturalmente para no
intervalo ouvir o conselho dos principaes de sua corte, a que chamão
Secúlos. Pedio-me por isso, que lhe mostrasse o que trazia , o que fiz,
começando por offerecer-lhe alguns objectos, taes como panno azul,
missanga branca, aguardente, do que se mostrou muito reconhecido, e
mandou trazer leite, milho verde, e um boi, que me deu .em signal de
agradecimento, promettendo-lhe que no dia seguinte traria gado para
trocar por alguns dos objectos que eu tinha; e assim me retirei para
bordo, vindo elle com os principaes dos seus acompanhar-me athe ao melo
do caminho para o embarque, e ali se despedido, e eu fui jantar para
bordo, e descançar."
(...)
...Viemos
pois no dia immediato, e com as precisas cautellas e a favor de não
pouco trabalho conseguimos entrar nesta bahia, fundeando peias seis
horas da tarde sem maior novidade. Logo forao vistas de bordo duas
bandeiras brancas, que erão os signaes convencionados com o oficial que
tinha ido por terra, algumas fogueiras , gado pastando, algumas
arvores, e bastante vegetação & c., tudo isto bastou para
confirmar-nos na ideia de ser este o logar que procuravamos , porém
como era quasi noute, i penas forão dois escaleres correr a bahia , os
quaes voltarão com a noticia de terem visto peia praia muitos negros,
que pareciào chamai-os.
(...)
...No
outro dia fui eu o primeiro a ir para terra com algumas bagatellas de
fazendas e missangas, nossas unicas armas, levando comigo sómente tres
homens negros e um branco, e havendo previamente combinado com o
Commandante, o fazer signal para bordo no caso de me verem perigo; logo
que saltei em terra, vi que de longe caminhavào para mim uma multidão
de negros, trazendo adiante uma bandeira branca, e depois que nos
aproximámos mais , reconheci que a gente que vinha na frente não era
gentio, por trazerem jaquetas brancas, quando estes costumào andar nus
só com uma tanga. Erão pois um pardo escrivão de Quilengues, com tres
soldados pretos da guarnição d'aquelle presidio, alguns Mocotas, ou
principaes da Corte de potentados visinhos, que o mencionado official
havia mandado adiante, a fim de collocarem as bandeirolas, e socegar os
animos da gente das praias, e para o que são muito proprios os homens
pardos, mormente os sertanejos, pelo pleno conhecimento do idioma do
paiz, vindo por isso a ter muito mais facilidade em conduzir os
indigenas aos seus fins.
(...)
...No
dia seguinte ainda as ceremónias forão as mesmas, trouxe gado e um
pouco de marfim, e offereceu-me leite que acceitei, e de que mandei
fazer sopas; porém quando vio o homem que eu havia incumbido d'arranjar a
comida, ir pôr o leite ao lume para ferver, se espantou , e disse, que
o aquecer o leite fazia mal ao gado, e assim que permittisse que elle
deitasse no leite um bocadinho de casca d'uma arvore, que tinha a
virtude de destruir o feitiço ou mal que pudesse resultar. Terminado
este incidente, fallamos sobre a questão da véspera que tinha ficado
pendente da sua decisão, e me disse, que não só consentia, em que
fizessemos casa nas suas terras, mas tambem que se levantasse uma
fortaleza, para que o gentio do interior os não viesse guerrear para
lhes roubar o gado, e que estava certo, que a vinda dos brancos devia
augmentar a importancia de suas terras. A final em todo o resto do tempo
que ali me demorei, me continuei a dar com elles muito bem, e quando
me retirei, os deixei do melhor acordo, fazendo-lhes repetidas
promessas de voltar em breve. "
(...)
...São
os indigenas d'esta bahia, como os Mocorocas , de nação Mucubal, e de
vida pastoral, possuem gado das duas especies já mencionadas em grande
quantidade, especialmente do vaccun, sendo porém dois terços ou mais
desta povoação de vida errante; porque como é immensa a quantidade de
gado que possuem, e sendo muito frequente na Africa a falta de chuvas,
se vêm obrigados a estabellecer a sua habitação aonde encontrão pastos ,
o que geralmente acontece sempre proximo dos rios e valles, em que
podem achar agua com facilidade, trocando-a por outra, logo que naquelle
logar começão a escacear os pastos, A estas habitações chamão sambos
ou curraes os quáes são de forma circular , tendo em roda uma ordem de
choupanas do feitio de fornos , com uma entrada pequena como a
d'estes,e que são formadas de páos espetados muito juntos formando um
circulo largo no chão , e estreitando athe se unirem todos na parte
superior, e depois de bem cobertas de palha, as barrão e cobrem
perfeitamente de barro amassado com bosta , o que depois de seceo as
torna impenetraveis á agua, respira-se porém dentro de taes habitações
um ar quente e abafadiço, que para nós europeos é insupportavel; apezar
disso elles não dormem jamais sem fogo, para o que costumã assentar
uma lage no centro das choupanas, e na falta d'ella, uma camada de
barro amassado, de que em todo o caso é formado o assento da cabana.
Pela parte de fora desta ordem de choupanas, ha sempre um tapume feito
de estacadas e ramos de tamarindeiro bravo, e outros arbustos
espinhosos, em que abundão aquelles sertões por toda a parte; é pois no
espaçoso terreiro do centro, que o gado fica de noite, mas tendo elles
o cuidado d''apartar ali as crias, para depois tirarem o leite, seu
sustento principal, e de que tambem fazem boa manteiga para diversos
usos, a que depois d'apurada e prompta chamão engunde. As mulheres são
as que trabalhão na cultura das terras, em quanto os homens só tratão
do gado, e no caso de guerra vão esconder aquellas e este, e pelejão
então para defender-se simplesmente, pois que não são guerreiros; ha
porém povoações no interior que lhes movem guerras para lhes roubar o
gado, sua unica riqueza, isto é, por elles assim avaliada." FIM DE
CITAÇÃO.
MariaNJardim
Inclui
cópia do REQUERIMENTO de António Joaquim Guimarães Júnior, o fundador,
em 1839, da 1ª feitoria de Mossâmedes, e 1 gravura de Mossâmedes datada
de 1863. Mossàmedes depois Moçâmedes!
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