quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Fuga de Moçâmedes pela costa dos Esqueletos 1975. Foz do Cunene e Namíbia


De um lado, mares agitados; do outro, o deserto mais cruel do mundo
O voo para a morte ou a liberdade pela Costa dos Esqueletos
Texto: Val King (revista Scope – África do Sul)
 
Desde que Moisés conduziu os israelitas do Egipto até à Terra Prometida, nunca houve igual êxodo em massa de um país africano. Na sua louca luta por segurança, 200 refugiados angolanos, sem o saberem, enfrentaram involuntariamente a região mais hostil do mundo.
O Major "Blue" Max Kessler mergulhou a asa do seu Comanche bimotor de forma acentuada para ter uma panorâmica melhor. A visão lá embaixo era suficiente para o fazer desatar a rir se não fosse tão dolorosa. Foi a coisa mais incrível que alguma vez tinha acontecido na história da Costa dos Esqueletos, famosa pelos seus naufrágios.
Abaixo, na margem sul do rio Cunene, estava a mais estranha fila motorizada que se atreveria a imaginar. Sessenta e um veículos de todas as marcas, carregados com os despojos de uma vida e transportando 201 refugiados angolanos, desde um bebé de um mês ainda não baptizado a uma rapariga grávida de 17 anos e incluindo avós viúvas vestidas de preto. Uma estranha fila determinada a enfrentar o deserto mais perigoso do mundo. O suficiente para fazer os esqueletos desta “Costa da Morte” girarem nas suas sepulturas arenosas.
Max Kessler, batedor do Esquadrão 112 do Sudoeste Africano, esperava encontrar um carro ou dois atolados na areia, enquanto percorria a costa do deserto em busca dos refugiados que fugiam do terror de Angola. Mas encontrou metade dos carros e camiões de duas localidades piscatórias...! Como recordou depois: "Parecia uma fila para uma corrida no autódromo de Kyalami (África do Sul), ao estilo português".
Max Kessler e seu companheiro igualmente surpreso, o major Nic Badenhorst, voaram baixo, sob pesadas nuvens costeiras, e pousaram suavemente num banco de areia firme o suficiente para sustentar o peso do avião. Foram então recebidos num cenário que mais parecia um campo de férias que um amontoado de refugiados perplexos, presos entre o banho de sangue de Angola e o deserto hostil da Costa dos Esqueletos.
Havia varais pendurados entre os camiões e as mães lavavam as fraldas e as roupas no Cunene, depois de verificarem que não havia crocodilos nas proximidades. As crianças brincavam com brinquedos e construíam castelos de areia. Os homens haviam assado um porco no espeto, prontos para a longa jornada rumo ao Sul. E quando Max Kessler e Nic Badenhorst saíram do avião, os angolanos quase os beijaram de alegria, prontos para festejar a sua chegada com vinho.
De alguma forma, este cenário não condizia com o clima de uma costa desértica que construíra sua horrível reputação com base em ossos humanos, navios e aviões. O motivo pelo qual não havia grandes massas de veículos espalhados pela areia era simples: normalmente, ninguém era louco o suficiente para desafiar a Costa dos Esqueletos em qualquer coisa menos do que veículos com tração às quatro rodas. Pelos vistos, depressa o deserto iria ser compensado por essa falta de carros abandonados.
Max Kessler e Nic Badenhorst depressa perceberam que havia pessoas que nunca tinham ouvido falar da Costa dos Esqueletos. Duzentas e uma delas, pelo menos. Como contou mais tarde João Jardim, o líder dos refugiados, de 27 anos: “Ainda em Angola, alguns espertinhos disseram-nos: 'Ao sul do Cunene é só conduzir 60 kms e depois chegam a uma boa estrada e a uma aldeia'. Nós nunca tínhamos ouvido falar da Costa dos Esqueletos. Mas mesmo que tivéssemos, não poderia ser pior do que Angola.”
Assim, a primeira coisa que os refugiados quiseram saber dos dois pilotos do Sudoeste Africano foi: "Onde ficam essa estrada e a próxima aldeia?"
Max Kessler balançou a cabeça em descrença e desenhou um mapa. A "aldeia" mais próxima, explicou pacientemente, era a pequena estância de férias de Swakopmund, mais de 800 kms a sul. E não havia nada parecido com uma estrada nos próximos 300 kms. A única pessoa que vivia nessa desolação varrida pela areia também morava a 300 km de distância, em Mowe Bay: era Ernst Karlowa, um guarda-florestal da reserva de caça Kakaoveld que alcançava o mar através do deserto.
Pelo meio existe apenas um acampamento policial temporário para patrulhas ocasionais, em Rocky Point, e um barraco abandonado em Angra Fria - e nada mais que um mar de areia governado por ventos fortes que tentam enterrar qualquer coisa que se cruze no seu caminho. Como enterraram um navio naufragado, que jaz agora a um quilómetro terra adentro.
Esta costa de diamantes, deserto e morte é cercada pelas ondas do mar e pelas correntes do Atlântico, a Oeste, e pelas formidáveis montanhas Baines e Brandberg, a Leste. É um lugar onde os rios são apenas nomes num mapa e onde marinheiros naufragados morreram de sede a olhar para um oceano de água. No entanto, de alguma forma outras criaturas conseguem sobreviver por ali: focas e pássaros marinhos, como o corvo marinho, chacais e hienas que os atacam e, às vezes, caça grossa do Kakaoveld. Até leões já foram vistos em Angra Fria.
É um deserto temido pelos homens que melhor o conhecem. No entanto, aqui estava a maior caravana a chegar à Costa dos Esqueletos - nas mãos de gente que ingenuamente pensava ter deixado o inferno para trás, em Angola, e não tinha a menor ideia de que tinha um deserto infernal pela frente.
A maioria dos 201 refugiados veio dos portos pesqueiros de Moçâmedes e Porto Alexandre, no Sul de Angola. Poucos tinham sido vítimas, pessoalmente, de brutalidade militar. Mas tinham ouvido histórias repugnantes de assassinatos, estupros e pilhagens noutras áreas do país. E decidiram fugir para o Sudoeste Africano antes que chegasse a sua vez. Alguns escaparam poucos dias antes dos soldados chegarem a esses centros pesqueiros.
O plano inicial dos refugiados era lógico. Decidiram enganar os soldados que bloqueavam as estradas e esperavam a sua passagem para os saquear, evitando as vias principais e dirigindo ao longo da costa. No início, eram apenas uma fila de veículos em marcha em direcção ao rio Cunene, pelo que a primeira parte do êxodo não teve grande história. Só que, quando chegassem ao destino, na margem norte, não haveria qualquer ponte sobre o Cunene.
Por isso mesmo, Jorge Coelho, mecânico, tinha sido o primeiro a chegar ao local da travessia - com um camião carregado de soldaduras e peças pré-fabricadas para construir uma jangada. Soldou todas as peças ali mesmo, na margem norte, e ficou lá, durante quase um mês, enquanto grupos de refugiados iam chegando em carros e camiões. Um refugiado até rebocou um atrelado e um barco a motor para a travessia.
A jangada conseguiu transportar 61 veículos em segurança para o outro lado do Cunene. A seguir, afundou sob o peso combinado de um camião de 20 toneladas e um carro. Três outros veículos ficaram presos no lado errado do rio. Os 201 refugiados reuniram-se então na margem sul do rio, no Sudoeste Africano, e enviaram alguns batedores para fazerem o reconhecimento, mas que encontraram apenas o deserto e nada mais do que esperavam. A provisão de combustível também era muito reduzida. Mesmo assim, com uma fé cega nas autoridades do Sudoeste Africano, decidiram esperar e rezar por ajuda.
E quando Max Kessler caiu das nuvens naquela tarde de sábado, receberam-no como se ele tivesse acabado de descer do paraíso.
Max Kessler não ficou para celebrar com vinho. Havia 201 vidas a serem salvas e ele não queria ficar de “castigo” durante a noite e dormir ao relento num clima ameaçador. Disse aos angolanos para deslocarem o acampamento para longe do rio, para o caso de um ataque surpresa na margem norte, e descolou rapidamente, transmitindo pelo rádio o SOS que deu início à maior missão de resgate na Costa dos Esqueletos desde o naufrágio do Dunedim Star, em 1942.
Nem por um momento Max Kessler acreditou que fosse possível salvar todos aqueles veículos. A sua esperança era relativa apenas aos refugiados. Andava há 13 anos a navegar pela Costa dos Esqueletos e conhecia bem a sensação de se perder no seu próprio quintal. Tinha descoberto caminhos pelo deserto através de marcos como leitos de rios secos, barracos abandonados e, ocasionalmente, um navio encalhado. E não acreditava que a caravana alguma vez pudesse percorrer aquela imensidão de areia e mar.
Já o Coronel Koos Myburgh, chefe da polícia de segurança do Sudoeste Africano, homem de falas mansas, pensava o contrário. Ele também conhecia a Costa dos Esqueletos melhor do que a maioria - e conhecia-a a partir do terreno. Costumava fazer patrulhas motorizadas até a zona proibida dos diamantes. E sabia que a única saída para aquele comboio de refugiados era dirigirem pela praia durante a maré baixa – durante 300 quilómetros de areia.
De Windhoek, o coronel Myburgh e seis dos polícias mais duros do Sudoeste Africano fizeram a árdua viagem pela Costa dos Esqueletos até o acampamento no Cunene, ainda a tempo de verem o camião e o carro afundarem a jangada. Um de seus camiões tinha avariado no caminho, mas outros quatro dos seus veículos conseguiram chegar ao local com o combustível e a comida de que os refugiados precisavam. Os Angolanos aguardavam ansiosamente a chegada da polícia desde que um Shakleton tinha sobrevoado o acampamento e deixado cair um bilhete avisando que a ajuda estava a caminho. Por sua vez, os angolanos, tinham rabiscado na areia, em letras grandes, as palavras "pão e combustível", para que a polícia soubesse quais as suas necessidades.
O Coronel Myburgh percebeu logo à chegada que, se havia alguma hipótese de sucesso, teria que colocar alguma ordem no caos que reinava no campo de refugiados. Os Angolanos não tinham líder. Estavam divididos em pequenos grupos, cada qual pensando que sabia melhor como cruzar o deserto. Alguns planeavam conduzir camiões carregados pela areia fofa, sem nem mesmo reduzir a pressão dos pneus.
O coronel Myburgh também percebeu que a maioria dos camiões estavam demasiado carregados para haver qualquer esperança de vencer o deserto. Mas, ao mesmo tempo que sentia pena daquelas pessoas que haviam perdido a sua casa e o seu país, insistiu para que descartassem os seus restantes pertences. E se fosse difícil, decidiu, poderia chamar camiões do exército para ajudar a aliviar o peso.
Em desespero, os refugiados haviam viajado para o exterior levando quase tudo aquilo para que tinham arranjado espaço. Para eles, era como se fosse tudo o que lhes restava no mundo. Estes poucos pertences eram o que os separava da miséria absoluta na terra onde esperavam recomeçar a vida.
E foi desta forma que um pequeno camião partiu para o inferno que o esperava, rumando a Sul carregado com uísque angolano barato. Era a única riqueza que o proprietário tinha e, ingenuamente, esperava vendê-la na primeira cidade ao Sul da Costa dos Esqueletos. Se soubesse o que o povo do Sudoeste Africano pensa do uísque angolano, tê-lo-ia deixado para trás. Mas, pelo menos, poderia alegar ser o primeiro contrabandista de bebida da mortífera Costa… se a sede não o apanhasse a ele, primeiro.
Outro camião levava um reboque carregado com peças de carro baratas. E outro carregava milhares de rands em equipamentos elétricos e ópticos. Um velho levava farinha suficiente para fazer pão para um exército. Todos eles esperavam abrir uma loja quando chegassem aonde quer que fossem. Sempre com a esperança de que o destino não fosse num trecho de areia esquecido por Deus na Costa dos Esqueletos.
As mulheres trouxeram os seus cães, as meninas as suas bonecas e uma família vinha completa com os seus papagaios de estimação, que praguejavam como um soldado português.
João Jardim, gerente de uma empresa marítima de Moçâmedes e que falava bem inglês, foi eleito o líder dos refugiados e começou a organizá-los. A maioria falava apenas português. Mas houve uma surpresa. O Sr. Gerhardus Miljo cumprimentou o Coronel Myburgh num Afrikaans fluente. Era descendente dos Afrikanners que tinham viajado para Angola na Dorsland Trek (uma série de explorações rumo a Norte realizadas por colonos bôeres da África do Sul no final do século XIX e nos primeiros anos do século XX, em busca de independência política e melhores condições de vida). Desta forma, completava o círculo da sua própria história. Caçador e operador de safaris, o Sr. Miljo conseguiu escapar de Angola com a sua esposa e dois filhos ao pular para o camião de um amigo enquanto fugia de soldados bêbados. Saíram apenas com as roupas que vestiam.
“A situação com os guerrilheiros armados dos três movimentos políticos tornou-se impossível”, contou o Sr. Miljo. “Não importa se estamos marcados como amigos ou como inimigos. Qualquer um pode ser morto apenas por um capricho. O padrão usual para estes grupos armados é invadir um bar ou loja e beber tudo o que estiver disponível. Então, embriagados e assassinos, eles simplesmente vasculham as casas e propriedades mais próximas. Se interferirmos, somos mortos."
O Coronel Myburgh planeava colocar o comboio improvisado em marcha durante a maré baixa da manhã seguinte, uma quinta-feira, e os veículos foram alinhados e colocados em prontidão na praia. A primeira etapa previa-se que seria de 140 kms, até ao local escolhido para montar um acampamento nocturno, em Angra Fria. Agora, restavam os preparativos finais, como encher todos os recipientes disponíveis com água e tomar um último banho na única água doce até Swakopmund.
Uma família refugiada descobriu que não tinha recipientes suficientes para armazenar água. Assim, em desespero, esvaziaram três latas de gasolina e encheram-nas com água do rio Cunene. Nunca se acostumaram a beber aquela água com cheiro a gasolina.
A tão esperada manhã nasceu com uma névoa lúgubre e os refugiados empacotaram as tendas e roupas de cama nos veículos e esperaram tão impacientemente como se esperassem a descida de uma bandeira a sinalizar o início da corrida infernal pela Costa dos Esqueletos. Que, para alguns, nunca começou.
O senhor António Mendez foi um dos poucos refugiados que não conseguiu atravessar o rio com o seu camião depois da jangada afundar. Tomou então a difícil decisão de regressar à margem angolana do Cunene para tentar resgatar o seu camião por outro caminho. Ele sabia que corria o risco de ser baleado por soldados e que a decisão significaria sempre a separação temporária de sua esposa e dos dois filhos. Mas o camião era seu único bem valioso. Enquanto se juntavam à caravana, a esposa e os filhos, que choravam, sabiam que talvez nunca mais o vissem.
Agora, a coluna estava em marcha e para dois carros desportivos a estreita faixa de praia entre a maré baixa e a areia do deserto tornou-se uma pista de corridas.
Às vezes, a areia da praia era firme e plana e o Fiat verde e o Alfa Romeo vermelho depressa atingiam os 120 km/h. Armando Gouveia, no Fiat, e Pedro Nápoles, no Alfa, faziam a corrida das suas vidas. Uma corrida contra a maré e entre eles - e com duas lindas miúdas para impressionar.
Para Pedro Nápoles, em particular, foi também uma forma de se livrar do pesadelo angolano, tão nítido na sua cabeça. Pedro, um rapaz de 23 anos, estudante do quarto ano de medicina em Luanda, tentou durante muito tempo cuidar dos seus próprios problemas naquela capital dilacerada pelos conflitos. Mas a ameaça estava por toda a parte.
Primeiro, vieram os pequenos incidentes: “Ao conduzir o meu carro, ouvia um negro dizer: 'Ei, miúdo branco, vai para o seu país. Esse carro bonito vai ser meu'. De repente, parecia um pecado nascer branco. Depois, veio a questão política. Um negro aparece, aponta-me uma faca e pergunta: ‘Qual é o teu partido político?’ E se eu disser o partido errado, é o meu fim. Então, fugi. Mais tarde, dois negros quiseram o meu relógio e, quando os afastei, descobri que tinham uma faca. Mas tive sorte. O exército passou e disparou sobre eles, que fugiram."
Depressa havia muito poucos médicos para tratar os muitos feridos de guerra que chegavam ao hospital e Pedro, como outros estudantes de medicina, foi chamado. Nessa altura, nada mais fazia sentido e o próprio camião que os levava para o hospital foi alvejado. Mais tarde, explodiram bazucas no hospital e um médico, duas enfermeiras e três pacientes foram mortos. Foi um assassinato brutal e sem justificação. Às vezes, dava por si a tratar pessoas que conhecia, até amigos, com ferimentos de bala ou faca.
A gota d'água aconteceu quando um seu amigo próximo foi atingido a tiro num ombro enquanto conduzia. Em resultado disso, o homem, Álvaro Baptista, bateu com o seu carro e uma multidão frenética cortou seu corpo em pedaços, à catanada. Algumas mulheres tentaram queimar o cadáver nos destroços do carro e foi então que Pedro viu o que restava do amigo.
Decidiu juntar-se à namorada, Juza Nascimento, no então mais tranquilo porto de Moçâmedes. Mas a paz também não durou muito por ali. E agora, ali estava ele, com o pé no chão a apalpar a areia fofa - e sentindo que a Costa dos Esqueletos era o caminho para a liberdade. Os sentimentos de Juza Nascimento, sentada ao lado de Pedro, eram mais confusos. O seu pai ainda estava algures em Angola e ela não tinha ideia das condições de segurança em que ele se encontraria.
Descendo veloz pela praia interminável, às vezes com a parte de baixo do radiador a bater na espuma do mar, às vezes, inevitavelmente, atingindo um corvo marinho que secava na areia, Pedro venceu a primeira etapa até Angra Fria em pouco mais de três horas.
Ele não conhecia a história do abrigo de madeira abandonado pelo qual passou a alta velocidade quando corria em direcção a Angra Fria. Nem sequer avistou a caldeira de um navio meio enterrada ou a roda de um bombardeiro entre os destroços espalhados pela praia. Mas foi exactamente aqui que 43 sobreviventes do infeliz transatlântico Dunedin Star se abrigaram do sol e da areia, enquanto as tentativas para resgatá-los resultavam em desastres sucessivos. Primeiro, o rebocador Sir Charles Elliot naufragou em Rocky Point, mais ao Sul, enquanto tentava alcançar o navio encalhado. Depois, dois tripulantes morreram enquanto procuravam nadar para terra. A seguir, um bombardeiro Ventura atolou na areia e, mais tarde, caiu no mar durante a tentativa de resgatar sobreviventes. Estes foram finalmente salvos por uma caravana que chegava a Angra Fria vinda do Kakaoveld - mas não sem antes terem enterrado lembranças sombrias dos perigos da Costa dos Esqueletos, como uma dúzia de esqueletos sem cabeça que por ali encontraram, resultado de algum naufrágio anterior.
Com tristeza, a longa coluna de motoristas que seguia Pedro começava a perceber que o deserto não era uma via expressa para a liberdade. Armando Gouveia, de 22 anos, contabilista, também sentia a alegria da liberdade ao fugir de Angola no seu Fiat. Um de seus primos passou oito terríveis horas debaixo de uma cama enquanto tiros de espingarda varriam sua casa. Armando saíra de Angola com tudo o que tinha valor para o seu coração: a namorada, Idalina Alves, ao seu lado, e o seu Fiat. Como os Nascimentos, a família de Idalina também sentia falta do pai. Ele andava à pesca, no mar, na altura da fuga, e só podiam esperar que ele tivesse fugido para Walvis Bay de barco.
A condução de Armando Gouveia tinha sido implacável enquanto perseguia o Alfa de Pedro Nápoles… até atingir a areia fofa e atolar. Foi então que a maré enchente alcançou o carro, que deixou de pegar e terminou a primeira etapa ignominiosamente rebocado por um Land-Rover, pelos últimos 30 kms. Mais tarde, uma pedra partiu o pára-brisas e ele teve de pedir uma camisola extra emprestada para se proteger do vento extremamente frio do deserto.
Apenas oito dos 61 veículos que partiram para a primeira etapa de 140 km chegaram a Angra Fria ao anoitecer. Um acabou por ser rebocado por mais de 100 km ao longo da praia depois de avariar. Os outros pararam durante a noite, em pequenos grupos espalhados ao longo da costa.
O líder dos refugiados, João Jardim, ia bem até que chegou à areia fofa e atolou. A seguir, uma enorme onda rebentou sobre o carro, deixando-o, com a sua esposa, Liliana, e o bebê de 20 meses, Paulo, indefesos lá dentro. João contaria depois: "Quando senti a força daquela onda sacudir o carro pensei que era o fim. Mas um Land-Rover puxou-nos para fora antes que o mar nos voltasse a apanhar."
Carlos Gancho também avaliou mal o terreno. O seu carro foi atingido por uma imensa vaga e capotou, mas apenas o pára-brisas se partiu. Mas foi o suficiente para o nervoso Carlos saltar do carro aos gritos: "Estou morto!"
Notícia que a sua esposa recebeu com calma, fechada dentro do carro virado ao contrário.
Já o camião que transportava o afrikaner angolano Herhardus Miljio e a sua família nem sequer teve uma oportunidade contra o deserto. Parou depois de deixar o Cunene e lá ficou. A esposa e os dois filhos encontraram boleia noutros carros, mas durante algum tempo Miljio só conseguiu ficar de pé ao lado de um camião pesadamente carregado. A maioria dos camiões não foi muito longe, ficando 12 deles irremediavelmente atolados 20 km após a partida. Foi então que alguns refugiados começaram a perceber que as cargas que tinham resgatado de Angola estavam a conduzir os seus camiões para uma morte certa neste deserto.
Também ficou claro para os refugiados que não teriam tido qualquer esperança para aquela primeira etapa na Costa dos Esqueletos se não fossem os sete polícias do Sudoeste Africano que os socorreram. O líder dos refugiados, João Jardim, comentou quando a caminhada terminou: "Sem a ajuda do Coronel Myburgh e dos seus homens não poderíamos ter feito isto. Foi uma jornada terrível e sem eles estaríamos agora a morrer naquele deserto."
Cada um dos 201 refugiados tinha algo para agradecer à polícia. Os carros e camiões ameaçavam atolar para sempre na areia da praia que ficava macia sem aviso prévio. Na maior parte das vezes, os motoristas da caravana estavam muito ocupados a tentar vencer a maré e fazer com que os seus próprios veículos passassem em segurança para serem de grande ajuda para os outros. O coronel Myburgh e seus homens patrulhavam constantemente aquela praia deserta, para cima e para baixo, em veículos com tracção às quatro rodas. Às vezes, os carros apenas precisavam de um reboque. Outras, iam até ao fundo na areia e os polícias saíam e cavavam, empurrando até que as suas costas doessem. Era, quase sempre, uma corrida entre a polícia e a maré enchente.
Às vezes, um camião atolava repetidamente porque sua carga era muito pesada. Pacientemente, a polícia ajudava a descarregar e reembalar, porque algum refugiado teimosamente se recusava a desfazer-se das suas posses que, provavelmente, ser-lhe-iam inúteis no seu novo destino, de qualquer maneira. Era um trabalho exaustivo. Havia sempre um veículo atolado em algum lugar ao longo da costa infinita. Depressa os sete polícias suavam sob o clima que fazia alguns refugiados tremerem de frio. Mas foi a esse clima que todos ficaram gratos. Às vezes, ele velava o deserto com uma forte névoa marinha e arrefecia-o com ventos frios do mar. Caso contrário, estava apenas nublado.
Para os homens que conheciam a Costa dos Esqueletos, isso significava que não havia a ameaça imediata de serem fustigados por areia, que poderia facilmente acabar com a caravana. Nesse caso, nem mesmo a polícia poderia ter desenterrado aqueles veículos. Mas veteranos do deserto, como o sub-oficial Piet Coetzee, sabiam que se os retardatários da caravana não se movimentassem a mais de 40 km por dia, as temidas tempestades de areia acabariam por apanhá-los.
Felizmente, essas tempestades não se materializaram durante a corrida infernal pela Costa dos Esqueletos, mas a exaustão acabou por atingir Piet Coetzee, que nunca havia recuperado totalmente de uma explosão de mina na fronteira com a Zambézia.
Depois de lutar contra carros, camiões e areia durante dois dias sem reclamar, desmaiou repentinamente. Foi levado de avião para o Hospital Oshakati, do acampamento policial de Rocky Point, num helicóptero Super Frelon, da Força Aérea. O diagnóstico apontou para exaustão e pressão arterial baixa. No segundo dia do percurso, o Coronel Myburgh decidiu mudar de táctica para acelerar a jornada. Com poucas excepções, a caravana tinha-se movido muito devagar naquele sombrio primeiro dia. O Coronel decidiu pedir dois helicópteros Super Frelon para transportar as mulheres, as crianças e grande parte da bagagem para um local seguro.
Mais de 120 mulheres e crianças foram recolhidas na praia entre o Cunene e Angra Fria pelos gigantescos helicópteros que desceram pela névoa. Foram assim transportados até Angra Fria onde esperaram que um Dakota da Força Aérea pudesse levá-los mais para Sul, para a Baía de Mowe. Ali, foram recebidos por camiões do exército que esperavam no final da estrada deserta para os levar até ao campo de refugiados de Rooikop, em Walvis Bay, a cerca de um dia de distância de carro. Uma das mulheres grávidas, de oito meses, a Sra. Anna Belbutha, de 17 anos, foi transportada de Angra Fria para o Hospital Oshakati para dar à luz o seu bebê.
Cinco dias depois de deixarem o Cunene, a corrida infernal acabou para as mulheres e crianças. E enquanto se acomodavam em tendas e esperavam pelos seus homens, houve reuniões inesperadas com outros refugiados que haviam sido dados como perdidos. A família de Idalina Alves estava entre as sortudas. O pai, por quem ela temia, apareceu no acampamento vivo e bem. Foi um dos muitos pescadores que fugiram de Moçâmedes de barco, depois de descobrir que a sua família já se dirigia para Sul.
Para a família Nascimento não houve um encontro feliz. Continuavam sem saber do paradeiro do pai e a Sra. Nascimento usava óculos escuros para esconder as lágrimas.
De volta à praia, os homens puderam conduzir com mais leveza, agora que as suas cargas tinham sido reduzidas a metade e as suas mulheres e crianças levadas para um local seguro. No terceiro dia, todos, exceto os 12 camiões encalhados, tinham completado a primeira etapa, do Cunene a Angra Fria. Dois dias depois, chegaram ao acampamento policial de Rocky Point sem acidentes graves.
À noite, os homens amontoavam-se ao redor das fogueiras do acampamento para evitar o frio intenso do deserto. Nesse momento, agradeciam o abastecimento interminável de madeira flutuante trazida para a costa pelas fortes ondas do Atlântico. Foi também o momento de ligarem os rádios transistores para tentarem ter notícias da Angola que lhes havia virado as costas. Mas tudo o que conseguiram captar foram as monótonas transmissões de propaganda da Rádio Luanda, controlada pelo MPLA, que falava de uma brilhante vitória, paz, lei e ordem.
"Disparate!", foi como João Jardim descreveu as emissões. "Acabamos de fugir para salvar as nossas vidas e eles tentam dizer-nos que não há matança e roubo."
Era muito mais agradável desligarem os transmissores e reunirem-se ao redor do violão que chefe da segurança do Sudoeste Africano tocava, tentando entreter os refugiados com músicas country e western e canções folclóricas tradicionais.
Ao sétimo dia, a maratona sem estradas para descer a praia da Costa dos Esqueletos durante a maré baixa terminou. Restava apenas mais um dia de viagem por uma estrada de cascalho. Passaram pelas escavações de diamantes abandonadas em Torra Bay e Toscanini, pela colónia de focas em Cape Cross e, finalmente, pela pequena cidade turística de Swakopmund a caminho de Walvis Bay. Tinha sido uma longa e dura viagem até à primeira "aldeia". Alguns carros foram rebocados e alguns levantados até à carroceria de camiões do exército.
A jornada pela estrada desolada terminou quando os homens beijaram esposas e namoradas no campo de refugiados de Rooikop, oito dias depois de deixarem o Cunene. Mas para João Jardim e alguns outros refugiados, o pior choque ainda estava para vir.
Os homens chegaram ao acampamento imundos e desgrenhados. Não se lavavam desde o Cunene e alguns exibiam uma barba de um mês.
No entanto, foram rapidamente examinados por funcionários da Imigração, que decidiram que muitos deles não se qualificavam para permanecer no Sudoeste Africano ou na África do Sul. Infelizmente, isso era verdade no caso de muitos dos refugiados, que mal sabiam ler e escrever, quanto mais falar inglês. E havia urgência, pois o transatlântico de luxo Oceanic Independence estava à sua espera para despachá-los para Portugal.
A terrível decepção que tudo isso representou fez com que João Jardim gritasse em desespero: "Acabo de fazer a viagem mais terrível da minha vida para chegar a este país e agora não posso ficar. Em vez disso, disseram-me que posso ir para Portugal, uma terra que me é totalmente estranha. Significa que iria apenas de um país conturbado para outro. Vivi toda a minha vida em Angola e sou africano, não português ”, dizia João Jardim, acrescentando amargamente: "Se não posso ficar neste país, prefiro regressar a Angola, mesmo que isso signifique a morte."
 
 
Foi um final triste para a odisseia da Costa dos Esqueletos.

 

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Mutu-ya-Kevela, Samacaca, e a revolta dos bailundos no Planalto Central

 

 
 
No início do século XX , com a atribuição por Portugal aos ingleses de uma concessão por 99 anos para a construção e exploração do Caminhos de Ferro de Benguela, vista como uma ameaça das prerrogativas no controle das passagem das caravanas, a revolta dos bailundos não se fez esperar no Planalto Central, comandada por dois guerreiros: Mutu-ya-Kevela e Samacaca. As tropas de Samacaca avançaram rapidamente, matando muitos comerciantes portugueses e aprisionando outros. Quebara de pele de onça às costas era um homem temível. porém chegaram mais tropas , os lideres foram liquidados, e a tropa começou a apoiar novos sobas fiéis a Portugal, os "regedores de indígenas". Os ingleses recusavam-se a continuar as obras enquanto a zona não fosse pacificada. Aos prisioneiros brancos foi dado o destino que era habitual naquela época a qualquer inimigo derrotado em combate: Samacaca fez deles seus escravos. Outros vendeu a sobas aliados.
A este respeito, conta José Eduardo Agualusa, em
Uma história oculta de Angola
(...)
Consultat
aqui:
 
 QUEM FOI SAMACACA OU SAMAKAKA?

"...Houve, entanto, um homem, que não era rei, mas que estava ligado à corte do reino do Bailundo, que não esteve para meias medidas. Esse homem chamava-se Mutu-ya-Kevela, que quis pôr freio aos apetites desmesurados dos portugueses. Mutu-ya-Kevela viria a ser dominado e morto em 1902, muito antes do aprisionamento, na região do Bimbe, do seu conselheiro, Samakaka, famoso pelos seus conhecimentos de magia, utilizado, em vão, para ludibriar as forças portuguesas. Dali em diante, os portugueses tiveram um domínio total do “Reino” ao ponto de, por um lado, influenciarem nas sucessões ao trono e, por outro, mobilizarem os reis, agora convertidos em sobetas, para as suas missões mais bizarras como foi, por exemplo, a mobilização dos bailundos, sob o comando do rei Candimba para a chacina da população dos Seles."
Origem


"...Conta-se que a presença portuguesa na região viria a constituir mais tarde uma ameaça ao poder tradicional do Rei Ndala, tendo, em 1771, penetrado no Reino do Bailundo. Muitos deles, segundo o narrador, já se encontravam na localidade do Kandumbo, criando, de certo modo, um clima de instabilidade aos populares da área. Em consequência disso, uma grande batalha, comandada por Teixeira Moutinho, viria a ser travada entre soldados portugueses e as forças do Rei ao longo do percurso de Kilengues e Kalukembe, uma vez que a intenção era atingir Huambo.
A operação não foi tão fácil como parecia, uma vez que ao chegarem à localidade do Kuíma foram alertados sobre a presença do temível Soba Samakaka Samba Yo Londungo, facto que forçou os soldados a uma paragem. Ao receberem informações sobre a localidade e o Rei Livongue, decidiram reorganizar-se, tomando de assalto a Embala do Reino do Huambo a 21 de Setembro de 1902.
Posteriormente, avançaram para o reino do Kandumbo, travando uma violenta batalha que culminou com a morte do Rei Ndala e seu adjunto, pondo em causa os cinco reinos que constituem a região do Planalto Central.
Origem


O comércio com o interior foi rompido com a revolta dos bailundos. Começaram a queimar as lojas dos comerciantes no Bailundo, havia centenas de brancos mortos, os primeiros refugiados chegavam a Benguela. "Falavam no chefe, o terrível Quebera e seu amigo Samacaca. Como começara? Ninquém que sabia contar. Só que esse Quebera era um monstro, trazia uma pele de onça nas costas, dentes enormes que lhe saíam da boca a escorrer sangue. " (p.52) Mutu-ya-Kevela[17], pelos comerciantes chamado Quebera, em 1902 dominou toda a zona que era impensável uma caravana passar. Começou a guerra contra os portugueses. Os habitantes nas suas petiçoes inumeráveis pediam que o Governador tomasse medidas, mas a tropa parou numa distância segura. Os habitantes de Benguela escrevem uma petiçao ao Governador-Geral exigindo novo Governador em Benguela e mais tropa para pôr o interior em ordem. Mutu-ya-Kevela veio buscar o soba do Huambo para se unirem na luta contra os colonos, a escravatura, a posiçao inferior de serem só intermediários do comércio e contra o álcool que enfraquecia os homens. "Mesmo os sobas independentes sao escravos, escravos da borracha. (...) É preciso fazer muito milho, (...) nao ser intermediário do comércio da borracha." (p.54) Esta guerra foi pacificada só pelas tropas metropolitanas mandadas pelo governador-geral Pais Brandao, em Julho, matando Mutu-ya-Kevela bem como, em Outubro, o soba do Huambo. A guerra foi terminada mas as caravanas do interior nao chegavam e os negócios estavam no zero. Os responsáveis perceberam que era necessário que os indígenas participassem na administraçao. "A tropa começou nomear novos sobas, fiéis a Portugal. Lhes chamavam regedores indígenas." (p.69) A sua primeira tarefa foi reactivar o comércio com Benguela.

ORIGEM



CLICAR SOBRE A CAPA DO LIVRO ABAIXO: