sexta-feira, 28 de março de 2008

«A caça e a protecção da fauna em Angola» de Silvestre Newton da Silva



Silvestre Newton Tomé Dias Da Silva
Silvestre Tomé Dias Newton Da Silva







O moçamedense António A. M. Cristão, publicou no seu livro «Memórias de Angra do Negro -Namibe- Angola», uma crónica assinada por Silvestre Newton da Silva que representa uma sentida alusão aos vândalos e caçadores furtivos que já nessa altura (1958) vinham dizimando a fauna do Deserto do Namibe, em busca de troféus que, segundo autor, para nada mais serviam que a serem exibidos a ingénuos pacóvios...                              

Silvestre Newton da Silva foi um jornalista profissional que a determinada altura abandonou o jornalismo para se tornar Gerente do Banco de Angola em Moçâmedes, e posteriormente
abandonou o Banco de Angola para, juntamente com Raúl Radich Júnior, criar a empresa Cicorel que se dedicava ao comércio, à construção civil e à industria extractiva de mármores e granitos. Foi graças a esta empresa que os mármores e granitos de Moçâmedes se tornaram conhecidos além fronteiras, e que vendidos em bruto, chegaram a ser em seguida transaccionados, dada a sua qualidade, como se de mármores de Carrara se tratasse.
 
 
Eis a crónica de Newton da Silva:                            











«A caça e a protecção da fauna em Angola»

Silvestre Tomé Newton da Silva, Lisboa 1958
... Minha pobre Angola, como eu te lamento!
Quando todos te incensam e exaltam, te rendem homenagens e te levantam aos píncaros da lua; quando todos festejam ruidosamente a tua riqueza, o teu progresso, as realidades do teu presente e as promessas do teu futuro; quando todos enaltecem e põem em relevo o surto da tua economia, as realizações do teu fomento, a segurança das tuas finanças; quando todos apontam ao mundo, atento e interessado, a multiplicação das tuas obras portuárias e os teus aproveitamentos hidroeléctricos, a expansão das tuas vias férreas e a renovação da tua rede rodoviária; quando todos e extasiam perante o nível montante das tuas exportações, e falam respeitosamente do café e dos ouros frutos da tua agricultura, dos diamantes, do manganês, e de outros tesouros escondidos no teu seio, das farinhas de peixe e da generosidade do teu mar; quando todos calculam, conjecturam e fantasiam o que virá a suceder depois que das enanhas do teu solo comece a jorrar em caudais esse sangue milagroso da terra, que é o petróleo; quando todos- e com quanta razão, com que justificado optimismo – te auguram um destino de esplendor, eu, minha querida Angola, sinto-me triste. Sinto-me triste, por ti e por mim.
                                                                                   
 
 
Não há dúvidas de que rica és muito mais rica, muito mais próspera, muito mais civilizada serás em breve. A ocupação do teu território e o seu desenvolvimento económico processam-se em ritmo acelerado; as tuas idades e as tuas vilas crescem como cogumelos; as tuas industrias expandem-se e cada dia são mais numerosas as enxada e as máquinas que rasgam a tua terra para nela lançarem a semente ou dela arrancarem o minério; não cessa de engrossar o rio de gente que aqui desagua e aqui vem perpetuar Portugal , e os colonatos, com as suas aldeias beiroas e transmontanas, as suas capelas e pelourinhos, o fumo dos casais subindo no ar tranquilo o lavrador tisnado que regressa a casa tocando à sua frente os bois que todo o dia charruam, podem bem ser a antecipação de uma Angola portentosa, consistência harmónica e prolífica de portugueses brancos e de portugueses pretos, verdadeira concretização do génio universalista e povoador da grei.

Vais ver, minha pobre Angola, muito rica, muito próspera, muito povoada, muito civilizada: - mas a tua beleza primeva, aquela que Deus te deu, a tua graça original o encanto da tua juventude, o deslumbramento da tua virgindade, tudo isso vai assando, rapidamente se vai extinguindo e desaparecendo. A pouco e pouco, hoje aqui, amanhã acolá, as tuas mata vão caindo, os teus matagais vão sendo desbravados e arroteadas, a tua chanas pastadas e pisoteadas por gados cada dia mais numerosos. As estradas e as picadas, tentacularmente, penetram até ao âmago dos teus mais recônditos sertões, e os jipes, desprezando-as, cortam a meio, por montes e vales, florestas e desertos, atravessando mulolas e dambas, vencendo todas as dificuldades, superando todo os obstáculos, atingindo os teus últimos recessos, desvendando os teus mais íntimos segredos. Sobre as rodas do teu corpo a motor, potente e velocíssimo, o Progresso avança, infatigável e inexorável, talando-te de lés a lés. Mais atrás dele, com atrás do carro dos triunfadores romanos, dir-se-ia que também uma voz vai murmurando, para ti o momento! Terrível e fatal de todas as fragilidades. De há muito que, em contacto com a civilização do branco, começaram a abastardar-se e a uniformizar-se os costumes e a indumentária dos nativos. De vastas regiões da província desapareceu já, por completo o indígena típico na sua quase nudez ancestral, e foi substituído pelo «calcinhas» anódimo e amorfo, tantas vezes caricato no que destoa do meio ambiente. Os penteados das mulheres, tão variados, tão ricos e tão fantasistas, sobretudo no sul, entrelaçados de conchas ou de missangas multicores, afeiçoados à força do barro ou de gunde, às formas mais caprichosas e espectaculares, vão cedendo o passo as carapinhas incaracterísticas, como incaracterísticos são os panos sujos de riscado e de chita que em grande parte substituem já os cintos coloridos, os aventai de peles de bichos, os grossos colares de contas, as pesadas pulseiras de latão. Para bem ou para mal – quem sabe? – a cultura indígena viu-se transformando, já em boa arte se transformou, como diz Gilberto Freire, em material de museu. E com essa transformação, tu vais perdendo, minha pobre Angola, alguma coisa do teu encanto, todo o teu pitoresco, tua frescura singular e primitiva. Ernesto de Vilhena, em arguta crítica ao sociólogo brasileiro que acabo de citar, faz uma análise profunda e subtil dos sintomas que levam, a ele próprio ao diagnóstico da «destropicalização do continente africano». Essa destropicalização tem sido em ti marcada, nos últimos vinte e cinco anos, que no domínio do material e do físico, quer no campo do espiritual. Mudança climatérica, alteradora das condições das condições de adaptação a meio e de vida nele? Simples reviravolta na atitude psicológica do europeu para com os chamados climas quentes, relaxamento da sua desconfiança e íntima reacção perante o pão da Costa de Africa? Já Marston Bates, o naturalista americano, num livro substancial, inverte a tradicional classificação dos climas, dando o nome de zonas «intemperadas» às compreendidas entre os trópicos e os círculos polares, onde o mercúrio dos termómetros passeia a escala toda, ao sabor das estações, e o de «temperadas» where winter never comes. 
                                                                                      

De qualquer forma e feitio, o que é certo, o que já é bem patente e real, é que tu, minha pobre Angola, estás perdendo aceleradamente tudo aquilo que, para gente cansada da monotonia frenética da vida metropolitana, constituía o teu maior atractivo e te nimbava de imprevisto e aventura. E uma coisa, acima de toda s mais, está assassinando a tua beleza, despojando-te dos teus melhores atavios, privando-te das tuas melhores galas: a destruição da tua grande fauna selvagem. Ao curso do progresso, não há Josué que o detenha, e mesmo o mais acérrimo proteccionista tem de reconhecer e admitir que perante as suas inelutáveis exigências e em face do interesse humano, a natureza tem de ir cedendo o passo e entregando novas extensões, até então bravia e inexploradas, à actividades e necessidades de uma crescente população. De acordo, inteiramente de acordo, mas como dizia o velho Horácio, est modus in rebus. Para que os teus fados se cumpram e o teu destino se integre será realmente indispensável que a tua fauna selvagem seja dizimada e exterminada, e que, mesmo nas lonjuras onde nem branco nem preto esgaravata o pãozinho de cada dia, se vá desfazendo, antecipadamente, o vazio e a desolação? O espectáculo maravilhoso das umas chanas, cobertas de milhares de antílopes, pertence ao assado. Muitas das tuas espécies estão ameaçadas de extinção. E por toda a parte é igualmente confrangedora a verificação de que os animais selvagens, acossados e perseguidos sem descanso, noite e dia, nos trezentos e sessenta e cinco dias de cada ano, correm em loucas correrias mal avistam gente ou carro, mesmo a um ou dois quilómetros de distância.Dentro de dez, de quinze ou vinte anos, e a manterem-se as condições actuais, as probabilidades de se encontrar, percorrendo-te, qualquer exemplar da tua fauna mais nobre, serão as mesmas de quem procurar uma agulha em palheiro. Para se ver animais de grande porte, só em reserva e parques, se umas e outros forem eficazmente defendidos e se uma crescente pressão económica e o jogo dos interesses particulares se não coligarem em luta de morte para as fazer distinguir e desaparecer.

E assim, minha pobre Angola, tu a rica, tu a esperançosa, tu a civilizada, muito em breve, a par das tuas riquezas, da tua prosperidade, do teu progresso, mostrarás também ao mundo a nudez das tuas matas, o vasto das tuas chanas, a desolação e o barbarismo da tua fauna sacrificada, destruida e exterminada. Dela restar-te-hão apenas, a dolorosa recordação, um pungente e inútil arrependimentoe uma emissão de selos. E os únicos caçadores, e os únicos amadores da tua natureza selvagem virão a ser ... os filatelistas.

Atingirás assim, possivelmente, um alto grau de civilização, imitando o que se praticou em países altamente civilizados, copiando o exemplo da Africa do Sul e dos Estados Unidos, onde as espécies maiores só subsistem, e em reduzidos números, em áreas de protecção. Não te ambiciono um tal sucesso, e julgo que nós, portugueses, que já soubemos dar ao mundo o espectáculo dignamente humano da perfeita integração de muitas e desvairadas gentes no seio da nossa própria grei, somos também capazes de lhe mostrar que compreendemos, melhor do que foi por outros compreendido, o carácter sagrado do quinhão que nos coube nas maravilhas da Natureza. Pelo que respeita á tua fauna, chegaste agora a um ponto crucial:- ainda estás muitíssimo a tempo de a salvar mas também a podes perder sem remissão. O desbaste sofrido pelos animais de caça, sobretudo desde a última guerra, não foi ainda tão profundo e radical que tenha invalidado quaisquer possibilidades de recuperação. Se as zonas mais acessíveis e frequentadas viram diminuir, de forma assustadora a sua população animal selvagem, noutros pontos, mais afastados e menos transitáveis, ela conserva ainda uma densidade suficiente, para garantir, à la longue, e por extravasamento, o repovoamento daquelas. Mas se continuar a caçar-se, como até agora se tem feito e a compasso do teu desenvolvimento económico não formos tomando todas as medidas e precauções convenientes, então, minha pobre Angola, a tua fauna virá a ter a mesma sorte mofina que já liquidou a de tantas outras regiões do globo.Parques, onde as tuas espécies se conservem e perpetuem em total segurança, não tens. Leis que as protejam, ninguém as cumpre, poucos as fazem cumprir; vozes que te defendam, são poucas e fracas, como a minha. Mas porque gosto de ti, porque há longos e longos anos me dás pão que como e em ti criei raízes e família, não quero, com o meu silêncio, por comodismo ou cobardia, tornar-me cúmplice do crime. Desculpa, minha querida Angola, ter-me eu próprio nomeado advogado ad-hoc. Merecias muito melhor, quem com mais competência, verdadeiro saber e brilho, defendesse a tua causa. Tão abandonada estás, porém, que tens de te contentarte com o pouco que te posso dar, e esse pouco é este livro em que procuro mostrar os males que te ameaçam e apontar alguns dos remédios que poderão dar-lhes cura.Não alimentes grandes esperanças, da mesa que te escrevo, olhando atrás das minhas janelas, vejo areia, uma enorme extensão de areia que morre na linha do horizonte. Para lá dessa linha, e até ao novo horizonte, e ainda para além, mais areia, sempre mais areia, só areia. É o deserto de Moçâmedes. E aperta-se-me o coração ao pensar que a minha possa ser também, sem eco e sem proveito,uma voz clamando no deserto, Deus permitirá, no entanto, por ti, por mim, por todos nós, que assim não seja.







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2 comentários:

Anónimo disse...

Este senhor foi meu avô. Agradeço a boa iniciativa de preservar alguma da memória de um homem que teve uma vida singular.

MariaNJardim disse...
Este comentário foi removido pelo autor.