Duas perspectivas do velho navio cargueiro grego «Silver Sky». Na segunda, a foto encontra-se encimada pela foto de Carlos José, um dos refugiados, à época aluno interno da "Casa dos Rapazes" de Moçâmedes dirigida pelo padre Diniz Lopes a quem agradeço a cedência
DA CIDADE DE MOÇÂMEDES NOS ÚLTIMOS MESES DA COLONIZAÇÃO
PORTUGUÊSA, À CIDADE DO NAMIBE NOS PRIMEIROS MESES DO PÓS INDEPENDÊNCIA DE ANGOLA. A FUGA NO «SILVER SKY» em 10 de Janeiro de 1976
Mário Augusto da Silva Lopes viveu o auge do processo revolucionário em curso (PREC), desenrolado em 1975, tanto na Metrópole como em Angola. Como ele mesmo refere:
"Tal como na Metrópole, mas pior que na Metrópole, também em Angola, com os movimentos de libertação instalados em Luanda, o ambiente revolucionário ia permitindo toda uma série abusos, ocupaçõ es, etc, mesmo de propriedades ganhas com o suor do rosto. Os movimentos bombardeavam-se de delegação para delegação, e a tropa portuguesa assistia passivamente ao decair da situação, enquantoo som mais audível por todas as cidades era o martelar de caixotes."
No final da licença graciosa que se encontrava a gozar na Metrópole, Mário Lopes ousou com a família regressar à sua terra natal, Moçâmedes, para ali se radicar definitivamente, onde assistiu às cerimónias da independência de Angola, suportou privações e perigos de toda a ordem, sempre insistindo em não partir. Eis como descreve esses momentos difíceis de sua vida:
“No dia 10 de Janeiro de 1976 já não dava para suportar mais. A fuga deu-se no «Silver Sky», o navio cargueiro grego, que nesse dia deixou a cidade do Namibe (ex- Moçâmedes) rumo a Welvys Bay levando consigo mais de 1600 pessoas a bordo comprimidas no convés e nos porões, partilhando a comida, o agasalho e a angústia no porvir, longe de se aperceberem que aquela viagem marcava o fim da presença em terras do Namibe de quantos naquele navio viajavam, e que de forma abrupta se viram obrigados a abandonar o seu torrão-natal. A ideia era o afastamento temporário para o alto mar à espera que a situação acalmasse. Foi a salvação possível."
No capítulo «Diário de bordo», do seu caderno sob o título O LADO ESCURO DA LUA, Mário Lopes narra as vicissitudes passadas no bojo daquele navio:
"...O drama pungente daquele milhar e meio de pessoas que deixaram o Namibe com destino a parte nenhuma, fugidos da guerra, em buscava de segurança num outro local, mas sempre com a esperança de voltarem à sua terra, tão depressa quanto a horda assassina e a loucura irracional dos homens abrandasse". Tal não aconteceu.
Passo a transcrever, na íntegra, o relato de Mário Lopes (*)
Passo a transcrever, na íntegra, o relato de Mário Lopes (*)
* * *
O LADO ESCURO DA LUA
«Diário de bordo»
Enquanto o «Silver Sky» se afastava das águas da baía, no espaço angolano grassava uma autêntica hecatombe, com milhares de homens, mulheres e crianças mortos e estropiados, cidades e vilas totalmente destruidas, fome, doenças, guerra... Essa era a imagem de Angola que perdurou décadas após a independência, prova evidente da incapacidade de Portugal descolonizar, e da irresponsabilidade ambiciosa das grandes potências que, atirando mais achas para a fogueira, vieram dar uma dimensão internacional ao conflito.
Seria tempo de se desmascarar os senhores da guerra, as potências internacionais que estiveram por detrás do genocídio do povo angolano, e todos quantos, sem deitarem um pingo do suor do seu rosto por Angola, contribuiram para fazer daquela terra rica um dos países mais pobres do mundo.
O que se relata a seguir, é a cronologia da minha perspectiva do acontecido em Moçâmedes, desde minha chegada, até à partida para Walvys Bay, a bordo do «Silver Sky», alertando-se, desde já, que o realce dado a alguns eventos são da sua responsabilidade e poderão não ter tido, no contexto da guerra civil angolana, o impacto aqui alcançado. Outros acontecimentos, de certo relevantes, não terão o destaque e a menção que plenamente se justificaria.
A descrição que segue é a dessa viagem de retorno às origens, ou seja, a da minha viagem de regresso a Portugal, iniciada no «Silver Sky», narrada dia a dia, bem assim como dos meses que a antecederam, sem esquecer a saga colonizadora e povoadora dos portugueses em terras do Namibe, da forma tão genuína quanto foi vivida, tão autêntica quanto lhe foi contada, ou quanto os documentos da época o atestam, uma herança para os vindouros, para que conste no correr eterno do tempo...
A DANÇA DOS MOVIMENTOS EM MOÇÂMEDES E OS ACONTECIMENTOS MAIS IMPORTANTES
Após o meu regresso a Angola, em Agosto de 1975, depois de gozados quatro meses de licença graciosa em Portugal, concedidas pelo Banco de Angola, a entidade patronal, deparou-se-me um quadro verdadeiramente dantesco, no que respeita à situação do terrritório.
Ainda no avião que me transportou e à minha família, de Lisboa para Luanda, constatei estupefacto, e com muita apreensão, que a única mulher que ia no avião, e as únicas crianças, eram as minhas.
No aeroporto «Craveiro Lopes», em Luanda, era o caos e o pandemónio. Saltitava-se por entre bagagens, pessoas, lixo e confusão. A ponte aérea Luanda /Lisboa para evacuação de «retornados» atingia o seu climax. Táxis eram inexistentes. Os hotéis estavam superlotados, não garantindo nem água, nem refeições.
Aguardei uma semana pelo avião da carreira da «DTA» que nos transportasse de Luanda para Moçâmedes, com adiamento todos os dias.
Chegados a Moçâmedes , onde nos aguardava o meu sogro Aníbal, demo-nos conta que o pandemónio que tínhamos vivido em Luanda, tinha aqui continuidade. Afinal, acabávamos de fazer o trajecto ao inverso do que toda a gente fazia em loucura colectiva. A debandada das pessoas estava no auge do frenesim. Fomos tidos em Luanda como em Moçâmedes, e , decerto, como seríamos em toda a parte, como seres absolutamente espaciais ou vindos das profundezas da Loucura e do Irreal. Na nossa casa, logo na noite da chegada, fomos brindados com o tiroteio intenso que grassava na cidade, como se duma sessão tétrica de boas vindas se tratasse. Logo ali decidimos que na primeira oportunidade a minha mulher e as crianças iriam engrossar o imenso caudal da mole humana que, de hora a hora, por terra, pelo mar ou de avião, deixava Angola, no intuito de regressar quando tudo estivesse mais calmo.
23 de Agosto de 1975
Após luta renhida, o MPLA desaloja de Moçâmedes, a coligação UNITA/FNLA, que se rende cerca das 19 horas, e passa a controlar a cidade.
28 de Agosto de 1975
Partiu hoje do porto de Moçâmedes, rumo a Luanda, o navio «Ngola», transportando refugiados, para evacuação aérea com destino a Portugal.
04 de Outubro de 1975
O dia mais triste da minha vida. Depois de muita hesitação, pesados todos os condicionalismos que a difícil situação envolvia, resolveu-se que não seria justo expormos a nossa família, mulheres e crianças, por mais tempo, aos horrores da guerra.
Cerca das 11 horas, malas feitas com o que o imprevisto e o imediatismo permitiam levar, a minha mulher, nossos três filhos, minha mãe, sogra, avó Rosário, cunhada Luisa e seus três filhos, tomaram um barco de cabotagem, cheio de refugiados, rumo a Luanda, para ali apanharem a ponte aérea que os levaria a Portugal.
Após o barco se perder no horizonte, ao regressar a casa, fiquei como que petrificado, tolhido de comoção, coração apertado, ao contemplar os quartos dos meus filhos. Naquele vazio, a minha mente povoou-se de recordações, vendo a um canto, a cama do Paulo Sérgio, ali, um brinquedo do Jorge, acolá, uma roupa do Mário, e toda a casa a recordar-me a minha mulher. Toda esta emoção, ferida ainda mais pelo estigma de não saber quando, em que condições iria revê-los.
12 de Outubro de 1975
Hoje, Domingo, deparei com a minha irmã e o marido, dois cunhados e tios, que chegaram de Sá da Bandeira, viajando de comboio. Haviam fugido daquela cidade onde estiveram presos durante dias sempre maltratados pelo MPLA. Traziam apenas a roupa que vestiam o corpo. Desfez-se em lágrimas logo que me viu. Não consegui arranjar muita roupa, porque as lojas estavam vazias e em minha casa não havia nada de mulher para vestir. Telefonei para Porto Alexandre, ao meu irmão Jorge, que trouxe de lá, roupas grossas e agasalhos, dos «fardos». Conseguiram apanhar o navio «Lobito» que partiu na 4ª feira, para Portugal, absolutamente à deriva, pois no caso deles, perseguidos e marcados para morrerem, deixar Angola, era sinónimo de sobrevivência.
28 de Outubro de 1975
Manhã cedo. Entraram em Moçâmedes pela estrada de Sá da Bandeira tropas do ELP/FNLA com apoio de mercenários sul-africanos brancos, portugueses de Angola e «mukankalas», comandados por um general australiano. Foi a debandada do MPLA que, fugindo como ratazanas, incendiaram e destruíram o material de guerra que não conseguiram transportar, deixando crianças e mucubais a resistirem aos invasores. Houve muitas mortes de entre as quais uma muito sentida, a do nosso amigo Mário «Chouriço».
A tomada de Moçâmedes foi algo de espectacular, com tanques, camions de apoio, infantaria, grande aparato bélico, progredindo pelas ruas da cidade, palmo a palmo. Ao largo, na baía, submarinos estrategicamente estacionados, faziam regressar a Moçâmedes vários barcos que transportavam famílias e guerrilheiros do MPLA que se escapavam para Benguela. Os sul-africanos não molestaram a população civil, nem mesmo os simpatizantes do MPLA, transmitindo-nos forte dose de segurança.
As hostilidades começaram na véspera, na parte da tarde, tendo o Banco de Angola, por motivo de segurança das pessoas que lá se encontravam, encerrado a Agência. Na impossibilidade de se circular pela cidade, passámos essa noite, bancários e clientes, no segundo andar daquelas instalações, reservadas aos Administradores do Banco.
O último embarque de automóveis em Moçâmedes.
Foto de Rui Pereira
5 de Novembro de 1975
Após muita indecisão que perdurou até ao último transporte, resolvi-me. O meu carro «Autobianchi A-111», foi o último automóvel a embarcar no «Lobito» para Portugal, e só foi conseguido por especial deferência de uns amigos que superintendiam o carregamento. A bagagem contendo rancho e recheio de casa, num total 7 volumes, seguiu também para Portugal a bordo do navio «Papacostas» , o último a sair de Moçâmedes, devendo chegar a Lisboa a 18 deste mês.
Tive imensas dificuldades em conseguir madeira para engradar a bagagem, pois como me atrasei, os stocks dos armazéns de madeira, aliás, como todos os outros, estavam esgotados. Como o barco estava prestes a zarpar, contratei três carpinteiros e serventes que trabalharam dia e noite, numa maratona contra o tempo, na feitura dos caixotes. Estes eram tão grandes que não cabiam nas portas, pelo que tive que partir as paredes do quintal da casa do vizinho para poderem ser carregados para a camioneta.
11 de Novembro de 1975 (Dia da Independência de Angola)
A Independência. Data histórica para Portugal e para Angola. Noite memorável para mim e para algumas centenas de portugueses e angolanos que assistiram à efeméride com discursos de ocasião e festança que durou pela madrugada dentro e durante todo o dia, feriado nacional, que culminou com o baile da Independência, no Estádio do Benfica. Assim ficara decidido entre os três movimentos e o governo de Portugal, com as inerentes politicas sociais e diplomáticas que o acto exige. O que não havia sido previsto, e muito menos acordado, foi que, nesta data, o neófito país estivesse envolvido em guerra civil, com os Movimentos a guerrearem-se e a desrespeitarem o que tinham subscrito em Alvor, demonstrando o governo português total incapacidade, como potência colonizante, para dominar tal estado de sitio.
Nesse contexto, às 00h00 do dia 11 de Novembro de 1975, quinhentos anos após Diogo Cão ter erguido o primeiro padrão a assinalar a presença portuguesa em terras africanas, os delegados da UNITA e da FNLA, arrearam a bandeira Lusa do mastro de honra, fronteiriço ao edifício do Governo Civil da cidade, depositando-a no chão, e hasteando as dos dois movimentos. O incrível ia acontecendo. Um rafeiro que por ali deambulava tentou abocanhar a bandeira arreada, no que foi impedido pelo Chefe do Posto, Pieter Van der Keller, autoridade que representava o governo português, que a tomou em suas mãos, dobrou-a, guardou-a. Tinha cessado, discretamente, sem pompa nem o simbolismo que o acontecimento justificava, a dominação portuguesa de quinhentos anos por terras angolanas. Angola caminhava para a desintegração, e estava a dois passos do caos completo e do apocalipse total. As confrontações entre os Movimentos sucedem-se em todo o País, que, agora, passa a ter uma constituição, dois presidentes, três exércitos e nenhuma administração.
Agora, livre da presença portuguesa que militarmente e nos últimos meses se mostrava inoperante, indecisa e timorata, continuava com mais fervor, sem trincheiras nem tréguas, o caos, a confusão, o genocídio tribal e a luta sangrenta pelo poder e pelo mando. Oxalá esteja profunda e redondamente enganado, mas ir-se-ão passar anos, talvez décadas, até que o povo angolano obtenha a Paz e a Tranquilidade que ambiciona e a que tem direito.
30 de Novembro de 1975
No porto comercial de Moçâmedes mãos criminosas fizeram deflagrar violento incêndio nos contentores e caixotes pertencentes a muitas pessoas que, à desfilada, tinham vindo dos distritos do Huambo e da Huíla, na expectativa de poderem embarcar os seus haveres para Portugal. Muitos daqueles pertences estavam já abandonados por seus proprietários terem partido para destino incerto, confirmada que foi a impossibilidade seu transporte.
Chega até nós os ecos do movimento político militar ocorrido 25 Novembro em Portugal, que, sob a liderança militar do General Ramalho Eanes, subtrairia ao Brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho, a preponderância política que detinha no Estado português.
Portugal havia estado, ao que parece, à beira de uma guerra civil, com um governo fragilizado que não governava, as estruturas militares politizadas e dependentes de grupos mais ou menos organizados, que ambicionavam o poder a todo o custo, e o povo descrente, intoxicado e manipulado por forças extremistas de esquerda que, após a queda do general Vasco Gonçalves, em 28 de Setembro, se tinham apegado ao símbolo que a figura prestigiada do General Otelo constituía, para prossecução dos seus intentos ditatoriais.
02 de Dezembro de 1975
Feriado nesta zona de Angola. Tomou posse o primeiro governo da República Democrática de Angola, em Nova Lisboa, que o governo do MPLA em Luanda apelida de «fantoche», ignorando-o.
27 Dezembro de 1975
A Unita bombardeia o navio «Guilherme Capelo» que entrou no porto Moçâmedes, autorizado pela FNLA, para abastecer de combustível o o navio «Roçadas», acostado ao porto comercial. Face à essa impossibilidade, o «Roçadas» fez-se ao mar.
28 de Dezembro de 1975
O «Roçadas» pela calada da noite fez-se ao mar, não chegando porém a descarregar a carga destinada a Moçâmedes que muita falta fazia por conter bens essenciais e alimentos e medicamentos. Ficámos a partir de agora sem um único meio de comunicação com o exterior, via rádio, nomeadamente com Portugal, o que muito nos entristeceu.
29 de Dezembro 1975
Na sequência de profundas desavenças entre movimentos que se tinham aliado e detinham o controle Moçâmedes, estoirou a confrontação armada entre eles. Pelas 9,30 horas da manhã iniciou-se tiroteio nas ruas de Moçâmedes, entre FNLA e UNITA, que durou até ao cair da noite do dia seguinte. Ficámos todos na sede do Banco, empregados e clientes, até às 19 30 horas, ao amainar da refrega, quando saímos, dissimuladamente, para as nossas casas. Foram 22 horas de fuzilaria intensa, com algumas baixas entre os beligerantes. No final do dia correm rumores que a UNITA domina militarmente a situação, estando a FNLA a aguardar a chegada de reforços provenientes de Sá da Bandeira.
Cerca das 21 horas, alegando motivos de segurança, o locutor Henrique Minas encerra a emissão da Rádio Clube de Moçâmedes.
Agora é a FNLA que controla o sul de Angola e Nova Lisboa. A UNITA está em Benguela e no Lobito, e nalgumas localidades a leste.
Cada vez a luta pela nossa permanência é mais difícil e penosa. Os alimentos vão escasseando e a electricidade que vem da barragem da Matala foi cortada pela UNITA. Agora torna-se impossível a fuga da cidade. Não há aviões, o «Roçadas» zarpou, e é perigoso andar pelo deserto, pois muitos «unitas» andam a monte e os «mucubais», armados pelo MPLA, têm feito grandes chacinas entre a população branca e negra que habitava as «concessões» no Camocuio, Lola, Caitou e outras. As ruas estão desertas. Moçâmedes já não tem quase ninguém, e os poucos que ainda cá estão, não saem à rua. A escuridão impera. O medo tolhe. Os boatos proliferam e aumentam o desânino. Na casa onde moro, sozinho, desejando o melhor mas adivinhando o pior, atirei apressadamente algumas roupas para dentro de uma pequena mala de viagem, na perspectiva de fuga rápida durante a noite.
30 de Dezembro de 1975
Eram 7,30 horas. Dois Jeeps «Land-Rover» circulam pelas ruas da cidade, dando vivas à FNLA. Os «Kuachas», derrotados, teriam cessado o tiroteio refugiando-se uns, no deserto, outros, na própria cidade, em casas e nos quintais abandonados.
Às 9,30 o Rádio Clube divulga um comunicado da FNLA em que se alerta para as pessoas regressarem às suas casas em virtude da situação não estar completamente normalizada. Pede que médicos e para-médicos disponíveis se dirijam ao Hospital para assistirem aos feridos e disponibilizarem medicamentos que tenham em seu poder. É lido também um apelo dos CTT para telefonistas regressarem aos postos de trabalho. Mais tarde, pela 16,30 horas, já com os mais curiosos a circularem pela cidade, assiste-se à tomada do Posto Administrativo de Santa Rita, nos subúrbios da cidade, onde se acoitavam elementos da UNITA. Continua a ouvir-se o tiroteio das acções de limpeza por parte da FNLA, que vasculha, minuciosamente as casas, quintais e residências de responsáveis e simpatizantes do Galo Negro.
Após a tomada da cidade por tropas da FNLA, com o apoio logístico e operacional dos do exército regular sul africano, viveu-se uma certa acalmia. As tropas sul-africanas confinaram-se ao seu aquartelamento, que fora do exército português, tendo dias depois retirado para o sudoeste africano, ficando as "estruturas civis" da FNLA a dominarem a cidade. Curto, porém, como se veria depois, foi este período de sossego.
10 de Janeiro de 1975, Sábado
Pelas 10,30 surgem as primeiras notícias de que se travavam violentos combates em Sá da Bandeira entre UNITA e FNLA para conquista da cidade, que estava de posse deste último Movimento, constando que as forças do Galo Negro tinham já iniciado a marcha descendente, pela serra da Leba, com destino a Moçâmedes e Porto Alexandre.
Às 11.30 horas, o Rádio Clube de Moçâmedes, ante a perspectiva da invasão da cidade por forças da UNITA, que estaria por horas, e face às notícias alarmantes que se propalavam pela cidade, divulga um comunicado em que o delegado da FNLA, reconhecendo a inferioridade dos homens e armamento, aconselha calma à população e ordena que se dirijam todos para o porto comercial ou para as instalações daquele Movimento, a fim de serem evacuados, de barco ou de automóvel, protegidos por militares.
No momento em que esta notícia era difundida, como funcionário do Banco Angola, encontrava-me num armazém vistoriando mercadoria vinda de Portugal, cuja documentação vinha à ordem e responsabilidade do Banco. Como o importador tinha já abandonado Angola, a mercadoria que integrava géneros alimentícios e vinhos, nunca seria desalfandegada, correndo o risco de ser roubada ou de se deteriorar, se o Banco não tomasse medidas urgentes para o seu aproveitamento, tendo em consideração a fase de carências de toda a ordem que se vivia.
Dirigi-me de imediato à nossa «messe», composta de amigos e colegas do Banco de Angola, como Custódio, o sogro, o Aguinaldo Matos e o genro, o Osório, o Zeca Santos, o Correia do talho, o Mena dos Correios, este, de grande utilidade por conhecer a rádio telegrafista do navio «Roçadas», e cuja família, tal como a minha, já se encontrava a recato em Portugal. Após muita controvérsia, e de pesarmos bem os prós e os contras, decidimos, unanimemente, com muita mágua, aproveitarmos esta oportunidade para sairmos de Moçâmedes. Estávamos cansados da guerra, duvidávamos se a nossa teimosia em permanecer faria sentido, reconhecíamos a nossa impotência para inverter fosse o que fosse, as perspectivas de futuro eram nulas, angustiava-nos o paradeiro desconhecido e a sorte das nossas famílias em Portugal . Cada vez que um movimento ocupava a cidade, era maior a sanha da destruição, vingança, ódio e morte.
Na compita pela dominação das cidades, vilas e povoações, os três Movimentos que faziam a luta armada contra a presença de Portugal em Angola (MPLA, FNLA e UNITA), degladeavam-se entre si, e, quando dominavam uma cidade ou região, para além de exercerem despoticamente a soberania militar e administrativa sobre elas, imputavam às populações simpatias pelos movimentos que os precederam no domínio da cidade. Para identificação das pessoas afectas aos vencedores, foram concedidos cartões de simpatizantes ou aderentes e como os três movimentos se revezavam ciclicamente no controle e permanência nas localidades, era normal a maioria das pessoas serem portadoras dos três ditos cartões de identificação.
O controle das pessoas no seu labutar quotidiano, era feito com muita insistência e invulgar aparato bélico por patrulhas de soldados, especialmente aos indivíduos que, ou se suspeitava, com razão ou não, de serem simpatizantes de outro Movimento, ou por exercerem algum cargo cívico de algum destaque; ou por serem brancos, ou ainda, simplesmente, por não haver nenhuma razão. Tinha que se ter o extremo cuidado de ter sempre à mão o cartão certo do Movimento certo. Quando se viajava, e, como não se sabia qual o Movimento que controlava determinada região do percurso, era quase uma lotaria adivinhar-se qual o cartão que tínhamos que exibir, quando este nos era exigido.
O meu Pai era camionista, e numa das viagens em que transitava de Nova Lisboa para Moçâmedes, assistiu sem nada poder fazer, ao espancamento brutal até quase à morte, do ajudante do seu camion, só por pertencer à raça «bailundo», que eram consideradas hostis aos agressores. Quando o meu Pai não se podendo conter lhes solicitou que parassem com aquela barbaridade, um dos agressores encostou-lhe a arma ao peito e retorquiu, espumando de raiva: Cala-te branco de merda, se não acontece-te o mesmo!
Certa vez na cidade, mandaram-me parar. Tem cartão, camarada? Inquiriu o soldado. Tenho sim senhor. É preciso mostrar? retorqui, remexendo nos bolsos. Se tem cartão não precisa mostrar. Se não tivesse, é que era preciso, saiu-se o militar, triunfante, dando-me ordem para avançar.
Nesta fase da nossa permanência em Moçâmedes, como em toda a Angola, havia gente a menos e automóveis a mais. Moçâmedes era também procurada por muita gente das cidades do interior que buscavam nos portos comercial e mineraleiro, transporte para sí, família e bens. Na impossibilidade de o conseguirem, estes eram deixados à guarda de um amigo, de um familiar, ou simplesmente abandonados.
Os automóveis circulavam até lhes faltar o combustível (só conseguido a contrabando), quando se lhes adivinha uma «pane» irreparável, ou, quando conduzidos por guerrilheiros embriagados, terminavam as loucas correrias enfeixados na esquina de uma casa, ou num qualquer tronco de árvore. Num dia, manhã cedo, soldados armados fizeram «alto» a uma carrinha que transportava dois indivíduos brancos. O condutor fartou-se de gesticular, mas o veículo só parou quando se espatifou contra um muro, e o «chauffeur» foi morto por uma bala que, atravessando o vidro detrás da cabine, lhe perfurou a nuca, provocando morte instantânea. Verificou-se então que o infeliz condutor não tinha obedecido à ordem de parar, por o automóvel não ter travões.
Mais dois incidentes de entre muitos de que fui testemunha, arreigaram em mim a firme convicção de que era inviável a permanência branca nestas paragens. No primeiro, soldados super armados, irromperam pela Agência do Banco de Angola, onde trabalhava, pretendendo resgatar um cheque, passado à ordem da Delegação da UNITA. Como as assinaturas não conferissem e face à negativa do pagamento do cheque, exigiram de imediato o seu resgate, sob a ameaça de abrirem fogo e destruírem tudo. O cheque foi-lhes pago, como é óbvio.
De outra vez fui com o meu pai ao Cinema, numa noite em que tal ainda era possível. No hall de entrada um jovem soldado, ainda púbere, impante de orgulho na sua farda de camuflado, levando a tiracolo uma espingarda metralhadora, peito cruzado por munições, interpelou o meu pai, pedindo-lhe um cigarro:
-Não tenho,porque não fumo, disse o meu pai, calmamente.
-Cabrão de branco, que nem sequer tem um cigarro para me dar, ripostou o heroi, segurando firmemente na arma, à espera, possivelmente, de reacção. Foi ouvir e calar. Pelo menos para mim, Angola estava irremediavelmente perdida.
A cidade estava completamente isolada do resto do território. Não havia transportes porque faltavam combustíveis. Não se podia circular, por falta de segurança. Estas duas situações inviabilizavam qualquer intercâmbio entre cidades vizinhas. As comunicações via rádio não funcionavam, como não funcionavam os Serviços básicos, Bancos, Hospital, Organismos públicos e comércio. Todo o pulsar da vida comunitária permanecia em mórbido estertor, e a única esperança de comunicação com o exterior estava num cargueiro grego atracado ao porto, que as tropas, prudentemente, não deixavam zarpar.
Não podíamos perder, como não perdemos, esta última oportunidade de nos pormos a salvo.
Parti de imediato à procura do meu pai e do meu cunhado Pedro, familiares mais próximos, que sabia ainda estarem na cidade. Não consegui contactar o meu pai, e o Pedro despreocupado, ignorando o que constava pela cidade, estava na praia, desfrutando o prazer do sol do início do Verão, não suspeitando de que naquele sábado o fazia pela última vez na bonita e mítica Praia das Miragens, fronteiriça ao Casino.
Depois, foi o emalar frenético do que estava à mão, o abandono precipitado das casas, o aliciar dos mais renitentes em ficar, e o rumar apressado para o porto, não sem uma única olhadela pela casa devoluta, pelo carro abandonado, pelo amigo hesitante que fica, por tudo o que nos envolvia e que foi, durante tantos anos, uma vivência plenamente vivida.
Cerca das 18,00 horas, após se ter dirigido por duas vezes às pessoas alojadas no «Silver Sky», navio de nacionalidade grega que se encontrava aprisionado no porto de Moçâmedes, o Felício, funcionário da Administração Civil, delegado da FNLA, de raça branca, visivelmente comovido, falando pausadamente, disse:
«A sinceridade com que vos falo nas horas boas, é a mesma com que vos falo nas horas más. Conforme prometi, aqui estou a dar-vos mais notícias sobre a situação. Até este momento não temos notícias seguras sobre a evolução dos acontecimentos em Sá da Bandeira. A situação é indefinida. Acho que não vale a pena correrem-se mais riscos inúteis. A partir deste momento, o vosso destino é este navio, que rumará de imediato para Walvys Bay. Vou dar ordens neste sentido ao comandante do navio. Boa sorte e...até um dia.»
A evacuação... Foto cedida por um amigdFacebook
Walvys Bay é uma pequena cidade piscatória situada no território vizinho, outrora conhecido por Sudoeste Africano, a cerca de 480 milhas a sul de Moçâmedes. A capital é Windhoeck, no interior do país, com cerca de 60 mil habitantes. O poder político é ilegalmente assumido por um Administrador-Geral designado pelo governo da África do Sul, que administra o território, já depois das Nações Unidas terem declarado o território, um Estado soberano da África Meridional, desde 1968. Os seus 824 269 Km 2 estão implantados na faixa litoral desértica do trópico de Capricórnio –deserto do Namibe - , este por sua vez, confinando com o extenso Kalahari, planáltico desértico, habitado por hotentotes e bochímanos. Tem cerca de um milhão de habitantes, sendo o primeiro produtor mundial de urânio e o segundo em diamantes.
No crepúsculo de uma tarde quente do Verão de África, e com a noite a ameaçar envolver-nos como que cúmplices do nosso triste destino, o navio, de luzes apagadas, solta as amarras, dolentemente, afasta-se do cais, rumo ao desconhecido.
ERA A FASE ESCURA DA LUA A ENVOLVER TUDO E TODOS...
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Gente de Moçâmmedees em fuga. Foto cedida pelo conterrâneo Artur Trindade (ao centro), a quem muito agradeço
«DIÁRIO DE BORDO» DE UMA VIAGEM ESPERADA
Cortaram-se definitivamente para muitos, senão para todos, os últimos laços físicos que nos ligavam a Moçâmedes, a Angola, à nossa Pátria. A comoção era visível em todos os rostos. O silêncio de cada um e de todos era aterrador, a tornar ainda mais pesada a negritude da noite que caia. Lágrimas rebeldes rolavam pelas faces enrugadas dos mais velhos, tentando outros, aperceberem-se da transcendência daqueles amargos momentos. Um rol de interrogações desfilava no meu imaginário e de todos os meus companheiros de aventura.
Que fazer? Que destino? Como sobreviver apenas com uma pequena mala contendo roupas? Onde e como estariam a minha mulher e os meus filhos, postos a recato em Portugal? Será que aquele país a viver intestinamente a ressaca da revolução, e cujas notícias acompanhávamos pelos relatos da BBC, ou a comunidade internacional, sabiam da nossa existência e achariam solução para nós?
Para tantas interrogações, uma mão cheia de NADA e outra prenhe de COISA NENHUMA. Entertanto, a cidade ia ficando longe, cada vez maiss longe, triste, abúlica, envolta no manto plúmbeo da noite.
Adeus Porto Alexandre, minha terra natal, da minha meninice, descuidada, livre, feliz, como foi a de todos os meninos naquela terra. AdeuMoçâmedes, dos meus sonhos de adolescente, de homem feito, onde conheci e amei a minha mulher e onde nasceram os meus três filhos. Parte de mim aí fica sepultado, para sempre, nas areia cálidas do teu deserto, e nas quentes águas das tuas baías, praias e enseadas que tantas vezes calcurreei.Todas as ruas, becos, caminhos, picadas, bocados de ti, são também pedaços de mim, arrancados violentamente do meu corpo por mãos enegrecidas e assassinas.
Perpassa pela minha memória a panóplia de emoções de uma vivência feliz, que julgava ter a duração da minha vida. Não me banharei mais nas tuas praias, que vão do Cabo de Santa Maria à foz do Cunene.Não experimentarei mais o êxtase e a comoção das caçadas, da Pediva ao Iona, passando pelo Tambor, Espinheira, Virei ou Pico do Azevedo, cruzando o deserto em todas as direcções, pelas «mulolas», picadas e trilhos sem fim, dormindo ao relento, noite dentro, farol do Piambo cintilando ao longe, escutando o marulhar das ondas batendo nas rochas, ou, no dia seguinte, lavando e acondicionando a caça nas praias do Kangulo, Mariquita ou Três Irmãos, para ludibriarmos a vigilância dos fiscais dos Serviços Veterinários. Adeus pesca submarina nas Pedras Negras, Cabo Negro ou Baía das Pipas, preliminar da subsequente caldeirada que «in locco», só o meu sogro sabia fazer e condimentar a preceito.
Do porão deste navio, a miscigenação de raças e de credos, de brancos, pretos e mestiços, homens e mulheres, crianças e anciãos, dão-me uma nova perspectiva de convivência inter-racial e de solidariedade humana.
No silêncio desta tenebrosa noite de sábado, 10 de Janeiro, que, para sempre ficará na minha memória, entre a multidão que partilha comigo o mesmo espaço, a mesma angústia, e a incerteza do mesmo destino, sinto-me só, triste e abandonado, qual corpo senil, sem vida e sem préstimo. Do tombadilho, contemplo o horizonte, e à medida que a cidade vai ficando mais longe, com o oceano ganhando espaço de permeio, os olhos humedeceram-se-me de lágrimas de há muito não choradas, por estar ciente de que nunca mais voltarei a Moçâmedes nem a Porto Alexandre. Paira também o desespero dos meus companheiros de jornada, brancos , pretos e mestiços, homens e mulheres , crianças e velhos, a imagem, afinal, da colonização «sui géneris» perpretada pelos portugueses em África e no mundo e que outros brancos e pretos, falando ou não outros idiomas, derramando-se por poltranas e gabinetes luxuosos ou movimentando-se nas «chanas» e matas desta Angola purulenta de chagas que já fedem, insistem em renegar ou escamotear.
11 de Janeiro de 1976. Domingo
O final da noite de ontem e a manhã de hoje foram ocupadas em organizarmo-nos. No afã da partida, e porque a mesma foi decidida de imediato, poucas pessoas se prepararam com o indispensável. E o indispensável era necessariamente, tudo quanto se prendesse com a alimentação, vestuário, agasalho e medicamentos.
Por volta das 16,00 horas foi servida uma refeição quente com o que foi possível confeccionar. Ordeiramente, as pessoas formavam fila e iam sendo servidas até a comida acabar. Os menos expeditos, obviamente, não eram contemplados, e, se nada tivessem de seu para comer, teriam que aguardar por nova refeição no dia seguinte.
Muito embora em Janeiro faça calor, as noites são muito frias e, quanto a agasalhos, também não fomos muito previdentes. As pessoas que não quiseram, ou que não puderam ir para os porões, tiveram que pernoitar no tombadilho e convés e arrostar com o frio e a humidade da noite. Os que podiam, cediam agasalhos, especialmente aos mais idosos ou adoentados e como durante o dia o Sol era abrasador, houve que cobrir todo aquele espaço com lonas e mantas , sarapilheiras, tudo o que pudesse resultar em abrigo.
12 de Janeiro de 1976. 2ª feira
Cerca das 9 horas, avistou-se Welvys Bay. O navio não foi autorizado a entrar no porto, tendo ancorado fora das águas territoriais. Quase de imediato foi visitado por médicos e autoridades sul-africanas. Após se inteirarem da situação em que nos encontrávamos, foi evacuada uma senhora, que necessitava ser hospitalizada.
Continua a expectativa sobre o nosso destino. Os noticiários são escutados atentamente por toda a gente, retransmitidos pelos alti-falantes de bordo. Nada noticiavam cobre a situação do «Silver Sky».
Durante o dia, vários aviões sobrevoaram o navio e eram visíveis fotógrafos e repórteres de televisão ou cinema. Mais autoridades sul-africanas visitaram o navio, nada transpirando dessa visita.
13 de Janeiro de 1976. 3ª feira
As noites continuam muito frias. Pela manhã, deparou-se-nos uma situação que muito nos entristeceu. Uma senhora octogenária de uma família da Torre do Tombo, em Moçâmedes, viajava no tombadilho, abraçada à filha, cega, corpo definhado pela sub-nutrição, ambas enroladas no mesmo cobertor. Eram absolutamente dependentes do auxílio dos outros e naquela posição de abraço fraterno permaneciam. A mãe, por já não poder andar, a filha Linda de nome, por ser cega e doente. Uma dependente da outra, e ambas da caridade alheia. De manhã, deram com elas imóveis, como era esperado, a filha abraçada à mãe, que era cadáver. Falecera durante a noite, sem que ela disso se apercebesse. A vida, porém, tem que continuar, e a expectativa , também.
Os géneros alimentícios vão rareando. Houve necessidade de se concentrar todos os alimentos dispersos por todos nós, para se poder confeccionar uma única refeição diária. Uma equipa médica da Cruz Vermelha Internacional, visita o navio, recusando abandoná-lo sem que as autoridades sul-africanas, de novo, vejam as condições sub-humanas em que se vive a bordo.
Os géneros alimentícios vão rareando. Houve necessidade de se concentrar todos os alimentos dispersos por todos nós, para se poder confeccionar uma única refeição diária. Uma equipa médica da Cruz Vermelha Internacional, visita o navio, recusando abandoná-lo sem que as autoridades sul-africanas, de novo, vejam as condições sub-humanas em que se vive a bordo.
Ao fim da manhã, vislumbram-se as primeiras traineiras que partiram de Porto Alexandre, e o arrastão «Rio Vouga», trazendo, sabe-se agora, a totalidade das populações de Moçâmedes e Porto Alexandre. Pelos comunicados, via rádio, das traineiras, sabe-se que a traineira «Sagres» foi abandonada na viagem, por se ter deflagrado incêndio a bordo, tendo todos os ocupantes sido recolhidos por outros barcos. A bordo de uma das traineiras uma parturiente deu à luz uma criança. O operador do rádio de bordo solicita ajuda, em forma de injecções, seringas, e antibióticos, e a presença de alguém com conhecimentos médicos, que possa ajudar naquela emergência. A rádio sul-africana é escutada na sua emissão em português e deu notícias da nossa aventura. Ouvimos, estupefactos, que o «Silver Sky», o nosso navio, tinha sido tomado à força, pela população armada e que a tripulação tinha conseguido dominar a situação. Outra fantasia de quem forjou a notícia, a seu modo, com fins especulativos.
Ao fim da noite um rebocador traz-nos alimentos, parte dos quais são imediatamente cozinhados. Seis doentes são evacuados, por carecerem de assistência médica urgente. Cabe aqui uma referência para o facto de haver já tantas pessoas a precisarem de assistência médica urgente. É que, apesar das condições péssimas de subsistência, havia a bordo muitos doentes que foram trazidos do hospital da cidade, por familiares e amigos que não queriam que eles lá ficassem, não só por a assistência que lhes era ministrada ser praticamente nula, mas também pela falta de médicos, enfermeiros e medicamentos.
Surgem as primeiras notícias oficiais sobre a nossa situação pela voz do Felício, nosso único dialogante nas conversações com os sul africanos. As autoridades sul-africanas recusaram-se a aceitar-nos. O comandante do navio, médicos e o comandante do porto intercedem pela prestação urgente de assistência em terra, tendo este último, numa posição de força, ameaçado autorizar a atracação do navio e pedir, de imediato, a demissão do cargo.
Esta atitude do Comandante do Porto de Welvys Bay calou bem fundo entre nós, apesar da profunda decepção que de nós se apossou, ao constatarmos a realidade nua e crua dos factos: as autoridades sul-africanas não nos querem no seu país, e a sua apregoada solidariedade para com o povo angolano, resume-se, egoisticamente, em colocar um travão, no próprio território angolano, à expansão do comunismo na África meridional.
Soube-se, entretanto, que amanhã de manhã, as traineiras virão juntar-se ao «Silver Sky», como companheiros de infortúnio e parceiros de desdita, nesta aventura de que não se vislumbra o fim imediato. Sentir-nos-emos, de certo, mais confortados pois na parte que me toca, fiquei a saber, pela escuta dos rádios das traineiras, que na «Maria João» vem lá o meu irmão Abel, e na traineira «Maria Helena», dos meus tios Neca, Zé Marques e Zé Camanhai, vem as suas famílias e a minha avó Catarina.
14 de Janeiro de 1976. 4ª feira
O navio continua ancorado ao largo, sem permissão para entrar no porto, agora já acompanhado das traineiras surtas de Porto Alexandre. A vida a bordo continua cada vez mais monótona. As horas arrastam-se dolentemente. Os noticiários são ouvidos com avidez. Consta que Benguela e o Lobito foram alvo de intensa metralha da aviação, mas não se sabe que Movimento ocupa aquelas cidades. Moçâmedes e Porto Alexandre são tristes palcos de sangrentos combates onde a UNITA parece levar vantagem. Sabe-se do esperado fracasso da reunião da OUA sobre Angola e da determinação do governo cubano em continuar a enviar «observadores militares» e armamento com destino ao MPLA, apesar do novo cessar fogo acordado entre os três beligerantes.
Estas notícias, apesar de nos entristecerem por dilacerarem ainda mais o martirizado povo angolano, em nada altera a firme decisão da quase totalidade dos brancos de seguirem para Portugal, em busca de paz e de trabalho, e de irem ao encontro dos seus familiares que os precederam. Esta convicção domina também a maioria dos negros e mestiços, pois Angola, para eles, não é mais que miséria, tristeza, caos, e a própria vida a perigar, momento a momento.
Por sugestão das autoridades sul-africanas, fez-se uma relação da identidade de cada um, com a menção da nacionalidade que deseja optar. Esta questão da opção da nacionalidade foi origem de longa controvérsia e foi tema obrigatório em todas as conversas. Escolha de nacionalidade? Quem me quer como cidadão? Quem pode ser cidadão angolano, e português? Será que passarei a ser apátrida, apenas por ter cometido o «crime» de ter nascido em Angola, de pais brancos, ambos naturais de Portugal? E a minha mulher, branca, de mãe angolana e pai algarvio? E os meus filhos, naturais de Angola, assim como nós? Tantas interrogações e nenhuma resposta.
15 de Janeiro de 1976. 5ª feira
Confirma-se ser de 1600 o número de refugiados no navio, pois ontem, após terem chegado os víveres, fez-se, já noite dentro, distribuição da única refeição do dia, composta de uma sande e um copo de leite, aproveitando-se a oportunidade para se fazer uma contagem que merecesse crédito.
Hoje, o Felicio apelou para a compreensão de todos no sentido de procederem à limpeza e higiene do navio, especialmente do porão, onde dorme a maioria das pessoas,tendo aquele espaço sido dividido em seis sectores e nomeados os respectivos responsáveis pela limpeza e asseio.
Registou-se um caso insólito que nos encheu a todos de alegria. Cerca das 09 horas da manhã, uma senhora deu à luz uma menina, tendo sido assistida pelo enfermeiro Milagre, de circunstância e de apelido.
Ontem, a equipe médica observou cerca de 30 doentes, considerados mais graves, ficando os outros para nova visita. Da parte da tarde soube-se que a nossa odisseia era conhecida do mundo inteiro, tendo apenas os governos da Suécia, Chipre, e a Organização das Nações Americanas intercedido junto do Governo da África do Sul para urgente resolução deste caso.
A população de Welvys Bay está solidária connosco tendo-se conhecimento de manifestações cívicas de protesto contra atitude do seu Governo em não ter permitido ainda a entrada dos refugiados angolanos no seu território. As autoridades locais apenas se prontificaram a melhorarem as nossas condições de vida, enquanto se aguarda pela definição do nosso destino.
Da parte da tarde, o Consulado de Portugal em Windoek iniciou a identificação de toda a comunidade embarcada, dando relevo especial à existência da nossa ascendência portuguesa, até à terceira geração, facto que nos levou a cogitar, de que muitos angolanos, especialmente os de raça negra, não deveriam ser evacuados para Portugal. A nosso pedido, o Cônsul recebeu os empregados do Banco de Angola, todos da Agência de Moçâmedes, que lhe solicitaram que, através da Embaixada portuguesa, fosse dado a conhecer à sede do Banco em Lisboa, a nossa situação, e o nosso desejo de sermos repatriados (para Portugal), o mais rapidamente possível.
Ao cair da tarde chegou a que supomos ser a última embarcação com refugiados a zarpar do porto de Moçâmedes : o rebocador «Rio Bengo» Este barco fez-se ao largo, no sábado, dia 10, mas regressou a Moçâmedes na segunda-feira seguinte, tendo sido alvo de fogo de morteiro que atingiu o navio e feriu várias pessoas. Esta acção, por parte da UNITA, que parece agora dominar o extremo sul de Angola, dá-nos razão quanto à decisão de abandonarmos Angola, para salvarmos a pele. Com efeito, os seguidores do Dr. Savimbi, na sua ânsia de extermínio racista, destruição e morte de tudo quanto lembrasse a colonização, não poupariam nada nem ninguém que fosse branco ou mestiço. Oxalá os anos vindouros não nos venham dar razão quanto aos verdadeiros desígnios do Dr. Savimbi e seus seguidores, extremamente racistas e tribais. Não me posso esquecer das sessões de esclarecimento de Savimbi, no Estádio Municipal da cidade, onde em português anunciava que os brancos eram necessários em Angola, para a construção de uma nova Pátria e slogans semelhantes, e em «umbundu», acicatava instintos raciais, incitando os negros a acabarem com os colonos que os dominavam há quasi 500 anos. Ele esquecia-se que haviam muitos brancos que dominavam aquele dialecto. Era do domínio público que a UNITA tinha enviado uma mensagem através de madeireiros ao então Governador Geral de Angola, Coronel Rebocho Vaz, propondo-lhe auxiliar o Exército português a derrotar o MPLA, proposta que não mereceu crédito nem resposta.
16 de Janeiro de 1976. 6ª feira
Consta que o «Silver Sky» ainda ancorado em águas internacionais, vai obter permissão para, finalmente, entrar no porto de Welvys Bay. Hoje, pela manhã, várias equipas de enfermeiros procederam à inoculação da vacina anti-tifoide, o que nos leva a pressupor de que iremos, ao fim de sete dias de cativeiro em mar alto, pôr pé em terra firme. nEsta perspectiva, deixa-nos, simultaneamente eufóricos e apreensivos, por finalmente a nossa situação começar a aclarar-se, perdurando a dúvida se no bom ou no mau sentido.
17 de Janeiro de 1976. Sábado
Faz hoje oito dias que nos encontramos a bordo. A Cruz Vermelha fez finalmente a sua aparição, tendo evacuado mais quatro doentes que careciam de tratamento médico urgente. Consta que são esperadas aqui, em Welvys Bay, mais 34 traineiras do Lobito e Benguela, também com refugiados a bordo.
A fuga portugueses e angolanos, refugiados
da guerra entre os movimentos de libertação em direcção ao sul. Desembarque em Windhoek. Cediida por um conterrâneo a quem se agradece
A
fuga portugueses e angolanos, refugiados
da guerra entre os movimentos de libertação em direcção ao sul.
Desembarque em Windhoek. Cediida por um conterrâneo a quem se agradece
A
fuga portugueses e angolanos, refugiados
da guerra entre os movimentos de libertação em direcção ao sul.
Desembarque em Windhoek. Cediida por um conterrâneo a quem se agradece
A
fuga a partir de Moçâmedes /Namibe , no Silver Sky, de portugueses e angolanos , refugiados
da guerra entre os movimentos de libertação, em direcção ao sul.
Desembarque em Windhoek. De costas na foto Mário de Sousa. Cediida por um conterrâneo a quem se agradece
A
fuga portugueses e angolanos, refugiados
da guerra entre os movimentos de libertação em direcção ao sul.
à esq. Amélia Maia. Trata.se da limpeza do Silver Sky rumo ao desembarque em Windhoek. Cediida por um conterrâneo a quem se agradece
Vários angolanos já radicados em diversas cidades sul africanas vieram de barco visitar-nos, sem lhes ter sido dada a permissão para entrarem no navio. Por eles ficámos a saber da sorte de outros familiares e amigos que ficaram em Moçâmedes e Porto Alexandre. Boas notícias para uns, incertezas que continuam, para outros. Devido à intercedência de familiares junto das autoridades locais, doze pessoas, portadoras de passagens aéreas já compradas para Lisboa, foram autorizadas abandonarem o navio. Para esses, num mar de abraços e recomendações, a odisseia terminou.
Continuaram a chegar mantimentos em grande profusão, o que paradoxalmente, é mau pronúncio, pois de cada vez que vemos chegar embarcações atulhadas de géneros alimentícios, é sinal de que a nossa permanência no navio continuará por mais algum tempo. À noite um acontecimento agradável quebrou a monotonia e a sensaboria da nossa convivência comunitária. Com a presença do Comandante do navio e esposa, improvisou-se um espectáculo de variedades a que não faltou orquestra, e que contou com saudosos valores dos palcos moçamedenses, como o Minas, Mário Figueiredo, Albertino e Raúl Gomes, a par das fífias dos caloiros, que a assistência magnanimamente aplaudiu. O improvisado serão terminou com uma desgarrada à boa maneira portuguesa.
18 de Janeiro de 1976. Domingo
Hoje pelas 10 horas da manhã, para os católicos, houve o sagrado culto da missa. Convém referir que entre nós, há quatro padres católicos e algumas madres, que prestaram desvelados serviços de assistência aos mais carenciados, sacrificando, elas próprias, algumas comodidades e alimentos para benefício de velhos e crianças, como é próprio do seu apostolado.
Será tempo de se dar uma ideia das acomodações que temos no navio. O «Silver Sky» é um cargueiro grego qie há 25 anos navega pelos sete mares. As suas instalações, nada famosas, apenas para os seus 38 tripulantes, passam a dar guarida , agora, a 1600 pessoas. As poucas cabines foram disponibilizadas, pela tripulação, para os mais idosos. O resto, que era a esmagadora das pessoas, disseminou-se pelos porões, tombadilho, convés, corredores, dormindo todos no chão e, nos primeiros dias, sem mantas nem agasalhos adequados às frias noites deste extremo meridional do continente africano. A utilização dos mictórios das casas de banho era através de filas e depressa entupiam. O cheiro era insuportável, e de tal maneira o odor a amoníaco empestava o ambiente , que teve de se improvisar várias plataformas de madeira, na borda do navio, para servirem de sentinas, e escalar plantões, noite e dia, para verificar se cada utente procedia à sua respectiva limpeza depois de utilizadas. A cozinha também não tinha condições para confeccionar refeições para todos. As panelas, de reduzido tamanho, tinham que ir ao fogo várias vezes e, havendo uma só refeição diária, a cozinha funcionava as 24 horas por dia. Por turnos as mulheres eram escaladas para cozinheiras, e os homens para ajudantes, servindo-se, prioritariamente às crianças, os idosos ou doente, as mulheres , e por fim os homens. Todas estas normas de disciplina comunitária eram acatadas sem controvérsia. As filas para as refeições, e aqui, tudo se obtia formando filas, era outro espectáculo. Como não havia pratos, copos nem talheres, houve que improvisar e tudo servia, ora como copos, ora como pratos e, após as refeições, eram guardadas religiosamente, longe de olhares cobiçosos, como se das melhores porcelanas da Vista Alegre se tratassem.
A permuta de tudo quanto tivesse valor, era livre e feita em profusão. Na parte que que toca, achei vantajosa a troca, com a senhora que se acomodava ao meu lado, no porão, de um pedaço de sabão que não me fazia falta, por uma pequena almofada, que passei a utilizar como travesseiro.
No que concerne aos alimentos, consta que os géneros que diariamente nos trazem, desde que estamos ancorados, são oferta do povo de Walvis Bay, cidadezinha onde se fixaram alguns portugueses e muitos angolanos, recentemente ali radicados, que se condoeram com a nossa situação, semelhante à que já haviam experimentado, e com protesto contra a atitude do governo sul africano em não nos auxiliarem com a devida presteza e eficiência.
19 de Janeiro. 2ª feira
E de súbito, a boa nova. O Felicio reuniu toda a gente para comunicar que o navio iria atracar, mas que ninguém sairia de bordo, até ordens em contrário. Passadas algumas horas, que mais pareciam uma eternidade, o navio pôs-se em marcha. Devidamente escoltado por dois rrebocadores portuários, e por entre as saudações dos nossos companheiros das traineiras, o «Silver Sky» dirigiu-se lentamente para o porto da baía de Welvys Bay, onde, finalmente, atracou. Depois do navio acostado, o Felicio chamou de novo toda a gente e, com voz repassada pela emoção, disse que nos ia deixar, por a viagem ter terminado, desejando-nos a todos boa sorte.
Aproveitámos a oportunidade para agradecermos calorosamente ao comandante do navio, sua esposa e tripulação e pedimos à autoridade ali presente para também transmitir ao povo de Welvys Bay todo o nosso agradecimento pelo auxilio prestado, e a simpatia e o sentimento humanitário com que acompanharam a nossa permanência ali perto. Depois foi a ansiedade que de todos se apossou, ao saber-se dos rumores de que cerca de 600 pessoas iriam sair já naquela manhã. Os rumores confirmaram-se. Fui dos primeiros, escolhido para acompanhar o senhor Ervedosa, funcionário aposentado do Banco de Angola, que nunca quis sair de Moçâmedes, a descer a inclinada escada de saída do navio. Vesti-me a preceito, com o único fato que tinha, gravata emprestada, que não disfarçavam o aspecto desleixado que a barba e o cabelo comprido davam ao meu visual. Ao descer as escadas, amparando o «velho Ervedosa», como carinhosamente o tratávamos, fui alvo das objectivas das câmaras fotográficas e de televisão, não por mim, obviamente, mas pelo ancião que acompanhava.
No cais, para além de algumas pessoas conhecidas ou de familiares e de elevado número de profissionais da informação (rádio, cinema, televisão), num eficiente serviço de recepção e de apoio prestado pela Cruz Vermelha Internacional (vacinas, refeições frias e rápidas, cigarros, roupas, objectos de higiene pessoal, etc) e a entrada para um comboio especial que nos iria levar a Windoek, capital do território, a cerca de 280 Km, no interior. O final da nossa viagem, fosse ela qual fosse , estava agora mais perto. Tudo isto em fila ordenada por militares sul-africanos, que utilizaram para aquele efeito, tendas de campanha e as próprias instalações do porto, disponibilizadas para aquela eventualidade.
Cumpridas todas aquelas demoradas formalidades, e já dentro das carruagens do comboio que nos levaria a Windoek , e porque a partida se atrasara devido à morosidade da saída das 600 pessoas do navio, fomos obsequiados, através das janelas das carruagens, com chávenas de canja, sandes e bolos, oferecidos pelas senhoras portuguesas que, deste modo, também quiseram minorar as nossas necessidades imediatas. E que boa ajuda elas nos prestaram, especialmente aos nossos sacrificados estomagos. Constou que os angolanos de raça negra e que, portanto, não demonstraram possuir nos seus antepassados ascendência portuguesa até à terceira geração, foram conduzidos à fronteira, para regresso a Angola.
Finalmente, cerca das 20 horas, o comboio dos refugiados angolanos pôs-se em marcha com destino à capital namibiana, nova etapa desta tragédia que, nem mesmo em noite de pesadelo, nunca ninguém ousara sonhar viver.
Créditos de imagem : Esta foto remetia do livro de Rogério Amorim 'COSTA DOS ESQUELETOS'. Publicações Europa-América Lisboa 2000. Angola & Descolonização - A fuga portugueses e angolanos, refugiados
da guerra entre os movimentos de libertação em direcção ao sul.
Créditos de imagem : Esta foto remetia do livro de Rogério Amorim 'COSTA DOS ESQUELETOS'. Publicações Europa-América Lisboa 2000. Angola & Descolonização - A fuga portugueses e angolanos, refugiados
da guerra entre os movimentos de libertação em direcção ao sul.
20 de Janeiro 3ª feira
Cerca das 11 horas da manhã chegámos a Windhoek e de imediato colocaram-nos em autocarros e encaminharam-nos para um «Campo de Apoio» dentro da cidade. Eram antigas e abandonadas instalações hospitalares, só com paredes e tectos sujos, sem as condições mínimas de decência e higiene para acomodar pessoas. Distribuíram duas mantas desinfectadas, pelo cheiro que delas exalava, um sabonete, toalha, dois pratos, copo e talheres e desinfectante em pó para pulverizar as camas de ferro, com estrado de madeira, à guisa de colchão. Depois de conhecermos os dormitórios, distribuíram a primeira refeição composta por duas fatias de pão escuro, nada saboroso e duas sandes de conserva de atum e água. Ali permanecemos o resto do dia.
Começaram a chegar mais amigos mas o contacto com o exterior era à distância, pois o «Campo» era vedado com arame farpado, e agentes da polícia impediam, em termos violentos, que de um lado ou do outro se chegasse à vedação. Mesmo assim o meu tio Mário Martins, que tinha ido de automóvel para Windhoek, por motivos de saúde, apareceu na parte exterior do «Campo», e conseguimos, a muito custo conversar, gesticulando, sempre sob a vigilância atenta dos agentes sul-africanos. Gostei muito de o ver, mas, infelizmente, embora me tivesse perguntado, em nada me podia valer.
Como o «Campo» está praticamente dentro da cidade, fomos objecto de olhares curiosos de todos os passantes, sentimo-nos como feras ou animais exóticos, expostos num Jardim Zoológico. Por este cuidado, todos evitamos contactos com familiares que vivem em Windhoek e que nos visitaram, logo depreendemos que resultariam infrutíferas quaisquer diligências em obtermos o «permit» para sairmos do «Campo». Soubemos depois que os sul-africanos quiseram tirar dividendos políticos deste abandono total das cidades do sul de Angola às hordas assassinas dos guerrilheiros da UNITA, movimento que apoiam, tentando evitar que transmitíssemos para o exterior a ideia de que tinha sido exactamente devido àquele Movimento que toda a gente abandonou Angola, no passado recente.
À noite, foi-me servida uma sande e uma chávena de café com leite, perfazendo 3 sandes e 2 chávenas de café com leite, os únicos alimentos ingeridos hoje.
Créditos de imagem: estas fotos tinham a seguinte legenda: do liro de Rogério Amorim 'COSTA DOS ESQUELETOS'. Publicações Europa-América Lisboa 2000. Angola & Descolonização - A fuga portugueses e angolanos, refugiados
da guerra entre os movimentos de libertação em direcção ao sul. Aqui já em Windohek
21 de Janeiro. 4ª feira
A parte da manhã foi dedicada à limpeza das instalações do «Campo», tendo-se procedido, para o efeito,à elaboração de escalas de turnos de limpeza. Da parte da tarde foi finalmente anunciado que, no dia seguinte, iria ter início a ponte-aérea Windohek/Lisboa, com a saída de dois aviões, transportando, cada um, 180 pessoas. Como no «Campo» havia famílias em que alguns elementos ainda se encontravam a bordo do navio, e como não desejassem desfazer o agregado familiar, foi ordenada nova fila, apenas para as pessoas que estavam prontas a partir. Mais contactos à distância com pessoas amigas já residentes em Windhoek que, sabendo das nossas carências alimentares se apressaram em ir à cidade, trazendo-nos frutas, refrescos e sandes.
Enquanto a noite não chegava, foi a azáfama de refazer e acondicionar os nossos pertences (os meus couberam numa malinha verde de cartão, que guardarei como relíquia), tomar banho, barbear-nos, no propósito de tornear a apresentação pessoal de cada um o melhor possível, para o reencontro com os nossos familiares em Portugal.
22 de Janeiro. 5ª feira
Dos 2500 companheiros de infortúnio que, fraccionadamente deixaram Moçâmedes e Porto Alexandre no «Silver Sky», rebocador «Rio Bengo» e nas traineiras, 180 partiram no primeiro avião e mais 180 no segundo que partiu duas horas depois. O pequeno almoço estava marcado para as 9 horas, mas já às 4 horas da madrugada os mais impacientes estavam de pé. Quase que garanto que nesta última noite passada em Windhoek, e que era também a última noite em África, ninguém conseguiu dormir.
Devido à antecedência da nossa comparência, dejejuamos mais cedo, formamos fila, conferiram os nossos nomes, e mais cedo partimos para o aeroporto, distante 42 km da cidade. Ali chegados cerca das 9 horas, fomos conduzidos em fila indiana a umas instalações cercadas de arame farpado (estes sul-africanos ou têm excedentes de arames, ou suspeitam de tudo e de todos, até das suas próprias sombras).
Cerca das 14, 30 horas, ainda em fila, e, antecedido de nova chamada, dirigimo-nos para o Boeing 707 «Vera Cruz» da TAP, que deixou o aeroporto uma hora depois. Às 19 horas, o aparelho fez uma escala técnica em Abidjan, na Costa do Marfim, para reabastecimento, não nos tendo sido autorizado sair do avião.
Duas horas depois, deslocamos rumo a Lisboa, fim da nossa odisseia de fuga à guerra, de abandono forçado da Pátria que não nos quis, mas com a garantia de continuarmos vivos e o propósito de nos sentirmos Homens úteis onde quer que sejamos acolhidos.
No Aeroporto em Lisboa.
Créditos de Imagem:
Arquivo do DN. De Simões Dias (seleção de fotos)
Foto da autoria de Alfredo Cunha
Talvez devido aos fusos horários ou à emoção da chegada, não sei se hoje foi ontem ou se amanhã é hoje. Não penso na incógnita e na incerteza do futuro, num país que embora conste do meu Bilhete de Identidade como sendo o meu, não sei se me acolherá como filho ou como enteado, com toda a carga de rejeição e repulsa que o termo, por vezes, contém. Não penso em nada disso, nem me apercebo da azáfama do aeroporto de Lisboa, com pais à procura de filhos, esposas tentando lobrigar maridos, parentes à cata de familiares, curiosos na expectativa de abraçar ou rever amigos.
Repórteres da imprensa falada e escrita tentam transmitir para a posteridade a amálgama de sentimentos e emoções que se transmite num abraço, num beijo, numa carícia, até num aceno ou num olhar fugaz. No seio desta babilónia, lá estava o IARN (Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais) a dirigir as pessoas, em mais filas, para a fotografia, para a identificação, para a entrega de documentos, alojamentos, etc. E repentinamente, cai nos braços do meu sogro que me aguardava há muitas horas na expectativa de que eu, o Pedro Rolão e família estivéssemos entre os que chegavam. Estava finda a odisseia da fuga da guerra que durou 13 dias.
Agora, era a emoção de rever a minha mulher e os meus filhos, 108 dias após a partida deles de Moçâmedes para Luanda em 4 de Outubro de 1975. Amanhã será outro dia para mim e para todos. Começara decerto uma outra epopeia pela sobrevivência, num pais com 700 mil desempregados, politicamente instável, economicamente débil, socialmente conflituoso, onde o FUTURO se nos apresenta incerto, mas não apreensivo como o espectro da Guerra a que, decididamente, voltamos as costas.
«OS MESES NÃO SÃO LONGOS,
NEM OS DIAS, NEM AS NOITES.
LONGA SIM, É A GUERRA »
Lisboa, Aeroporto da Portela de Sacavém, 22 de Janeiro de 1976.
(ass Mário Augusto da Silva Lopes
(ass Mário Augusto da Silva Lopes
(Angolano de nascimento, descendente de portugueses da Póvoa de Varzim)
Dactilografado por MariaNJardim a partir de um caderno que lhe foi oferecido pelo Mário Lopes.
a quem muito agradece a disponibilidade.
Segue a lista (em elaboração) dos habitantes de Moçâmedes que abandonaram a cidade neste navio (a completar...)
Alberto dos Santos Ramos Neca
Albertina Rodrigues Martins Neca
Ahlers Alberto Martins Neca
Aguinaldo Matos (Banco de Angola) e genro
Albertino Gomes
Amélia Maia
Angelo Nunes de Almeida e filho
Antonio Freitas
Antero de Quental
Artur Miranda Trindade e família
Carlos Quental
Correia (do talho)
Duarte Cardoso
Ervedosa
Fragata (3 elementos da familia)
Felício
Gabriela Cardoso
Henrique Minas e familiares
Irmãs Doroteias do Colégios Nossa Senhora de Fátima
Jaime Custódio (Banco de Angola), e sogro
José Manuel Paulo Nascimento (Mantela)
José Joyce Chalupa e Dina Chalupa
Josefina Cordeiro
Jorge Maló de Almeida
José Santos (Zeca) do Banco de Angola
Laurindo Pradanta Marques Couto
Licinio
Luis Alberto Colmonero
Luis Edmundo Cordeiro (trabalhava no porto de Moçamedes)
Linda e mãe
Luis Alberto de Noronha Cardoso (professor Ginástica ECM)
Maria Augusto da Silva Lopes
Manuel Azevedo Osório
Mário de Sousa
Manuel Virginio Azevedo do Nascimento , Celeste Custódio Nascimento, Celeste de Freitas Custódio
Maria Manuela Seixas Cardoso
Mario Augusto da Silva Lopes
Mário Figueiredo
Mena dos Correios
Odete Maló de Almeida
Osório (Banco de Angola)
Padre Pinto Lobo
Palmira Quental
Paulo Quental
Virgilio Nunes de Almeida
Padre Dinis Lopes e seus pupilos da Casa dos Rapazes de Moçâmedes
Luis Edmundo Cordeiro (trabalhava no porto de Moçamedes)
Ilma dos Santos Cordeiro,
Fatima Cordeiro
Filomena Cordeiro
Antonio Freitas
Josefina Cordeiro.
Raúl Gomes
Suzete Martins Neca
Continua....
Nota: Solicita-se respeito por este texto que se encontra publicado também em outros dos meus blogs dedicados a Moçâmedes, e pode ser daqui retirado desde que exiba o nome do seu autor, Mário Augusto da Silva Lopes, bem como a referência ao blogue de onde o mesmo provêm: http://princesa-do-namibe.blogspot.com/2010/09/fuga-da-cidade-do-namibe-ex-mocamedes.html ou a est postagem.
Segue a lista (em elaboração) dos habitantes de Moçâmedes que abandonaram a cidade neste navio (a completar...)
Alberto dos Santos Ramos Neca
Albertina Rodrigues Martins Neca
Ahlers Alberto Martins Neca
Aguinaldo Matos (Banco de Angola) e genro
Albertino Gomes
Amélia Maia
Angelo Nunes de Almeida e filho
Antonio Freitas
Antero de Quental
Artur Miranda Trindade e família
Carlos Quental
Correia (do talho)
Duarte Cardoso
Ervedosa
Fragata (3 elementos da familia)
Felício
Gabriela Cardoso
Henrique Minas e familiares
Irmãs Doroteias do Colégios Nossa Senhora de Fátima
Jaime Custódio (Banco de Angola), e sogro
José Manuel Paulo Nascimento (Mantela)
José Joyce Chalupa e Dina Chalupa
Josefina Cordeiro
Jorge Maló de Almeida
José Santos (Zeca) do Banco de Angola
Laurindo Pradanta Marques Couto
Licinio
Luis Alberto Colmonero
Luis Edmundo Cordeiro (trabalhava no porto de Moçamedes)
Linda e mãe
Luis Alberto de Noronha Cardoso (professor Ginástica ECM)
Maria Augusto da Silva Lopes
Manuel Azevedo Osório
Mário de Sousa
Manuel Virginio Azevedo do Nascimento , Celeste Custódio Nascimento, Celeste de Freitas Custódio
Maria Manuela Seixas Cardoso
Mario Augusto da Silva Lopes
Mário Figueiredo
Mena dos Correios
Odete Maló de Almeida
Osório (Banco de Angola)
Padre Pinto Lobo
Palmira Quental
Paulo Quental
Virgilio Nunes de Almeida
Padre Dinis Lopes e seus pupilos da Casa dos Rapazes de Moçâmedes
Luis Edmundo Cordeiro (trabalhava no porto de Moçamedes)
Ilma dos Santos Cordeiro,
Fatima Cordeiro
Filomena Cordeiro
Antonio Freitas
Josefina Cordeiro.
Raúl Gomes
Suzete Martins Neca
Continua....
Nota: Solicita-se respeito por este texto que se encontra publicado também em outros dos meus blogs dedicados a Moçâmedes, e pode ser daqui retirado desde que exiba o nome do seu autor, Mário Augusto da Silva Lopes, bem como a referência ao blogue de onde o mesmo provêm: http://princesa-do-namibe.blogspot.com/2010/09/fuga-da-cidade-do-namibe-ex-mocamedes.html ou a est postagem.
Outras fugas:
FUGA PELO DESERTO DO NAMIBE
Fotos: Angola & Descolonização - A fuga portugueses e angolanos, refugiados da guerra entre os movimentos de libertação em direcção ao sul 'COSTA DOS ESQUELETOS' De Rogério Amorim
https://www.facebook.com/groups/129311523790491/user/100007864480077/
Uma crônica maravilhosa para todos os amigos de Angola, especialmente para os que fizeram a CARAVANA de fuga pelo deserto até à África do Sul
Vou notificar alguns amigos que sei que lá estiveram nas caravanas e seguiram na travessia do deserto.
Autor: SONIA ZAGHETTO
Fotos: Angola & Descolonização - A fuga portugueses e angolanos, refugiados da guerra entre os movimentos de libertação em direcção ao sul 'COSTA DOS ESQUELETOS' De Rogério Amorim
"Já sentiu saudade de sua terra, senhor? É uma coisa que brota na fundura do peito, percorre bem devagar a pele, arrepia os pelos dos braços, bambeia as pernas. Garra de unhas pontudas, pega o coração da gente e espreme lentamente. Pingam gotas vermelhas que abrem uns ocos na alma dos homens. Houve um tempo em que eu não sabia o que era saudade de casa.
Nasci numa cidade do sul de Angola, Nova Lisboa. Hoje ela se chama Huambo. Era o dia 2 de abril de 1958 e minha mãe tinha 16 anos. Solteira. Meu avô não queria que eu nascesse, não. Minha mãe bateu o pé e foi enfiada num convento para que eu nascesse lá. Depois eu seria dada para adoção. Minha mãe bateu o pé de novo: agarrou-se a mim – sua carne, seu sangue. Fiquei. Até completar um ano, vivi entre os hábitos das freiras, ninada pelo som das orações, dos cânticos, dos sinos, filha das Ave-Marias, das Salve-Rainhas, dos Pai-Nossos sentidos.
Talvez minha mãe tenha rezado muito, não sei. Talvez os santinhos que me viram chegar ao mundo tenham adoçado o coração de meu avô. O certo é que de repente ele se viu apaixonado por mim. Veio nos buscar. O que sei sobre essa época é o que minha mãe contou. Eu mesma de nada lembro. O que ela conta é que eu e meu avô não nos separávamos. Alto, de cabelos grisalhos e sorriso largo, ele me carregava nos ombros pra todo lugar e me mimava, me ensinava a ser respondona, não permitia que a mãe me castigasse. Só ficamos na casa dele até eu completar três anos. Mamãe não tolerava a “madrinha”. A bem da verdade, não era madrinha – era madrasta.
Minha avó morreu quatro anos antes do meu nascimento. Assassinada. Estava na cozinha e um homem chegou. Disse estar com fome, pedia comida. Minha avó se compadeceu: sabia dos sofrimentos dos homens negros em Angola. Mandou-o entrar e sentar-se à mesa. Enquanto servia o prato, o homem se levantou. Como uma pantera, veio por trás e a estrangulou. Minha mãe e meus tios menores estavam no quintal, brincando. Nada viram. Ficou a lição de que algumas criaturas – não importa a cor da pele – são diabos. Ah, se são.
A casa do avô, em Nova Lisboa, tornou-se lugar das férias até os meus 10 anos. O avô trabalhava de sol a sol na chitaka. Levantava às 5 da matina e ia pros campos de sisal, abacaxi, laranja, goiaba, tangerina, caju. Às 9 horas, eu e os primos levávamos o mata-bicho pra ele e pros trabalhadores. Era bom aquele tempo de brincar, nadar no lago, subir nas árvores, cravando os dentes nas frutas colhidas no pé, correr atrás de patos e galinhas e dar cigarro aos camaleões só para vê-los mudar de cor e despencar do galho completamente chapados.
Até hoje, senhor, não encontrei comida melhor que a da senzala. Todos juntos, brancos e negros, comendo pirão ao molho de dendê e peixe seco. Que saudade agora me dá de pegar o pirão com a mão, molhar no dendê e depois lamber os dedos besuntados. Não tem nada melhor viu?
Quando eu e minha mãe saímos de Nova Lisboa, fomos pra Luanda. Ela trabalhava como costureira. Foi assim que me criou, sentada na máquina de costura. Cresci entre tesouras, linhas e tecidos, rendas e fitilhos. Grandes espelhos refletiam as senhoras elegantes que chegavam a toda a hora. Minha mãe era a melhor: só trabalhava pro high society de Luanda. Noivas? Eu juro, senhor, que perdemos a conta de quantas ela vestiu – uma mais bela que a outra.
Adolescente, estudei num colégio de freiras, o melhor de Luanda, o mais caro. Era bolsista e tinha a obrigação de ter notas altas. Entrei no colégio por recomendação do presidente da Câmara de Luanda, cuja esposa era cliente da minha mãe. Gosto de lembrar desse colégio. Ali fiz grandes amizades, algumas duram até hoje, embora separadas por oceanos. Foi lá, também, que aprendi a me defender. Filha de mulher solteira, quantas vezes me chamaram de bastarda? Nem lembro. Eu reagia. Não nasci para baixar a cabeça, não senhor.
Morávamos num apartamentozinho pequeno. Quarto e sala, cozinha, banheiro e uma sacada minúscula, de frente para o mercado municipal, que a gente chamava de Kinaxixe ou Mercado da Maria da Fonte. Na época de provas eu acordava às 3 da madrugada. Quando os feirantes começavam a arrumar as bancas, eu aparecia na sacada e berrava para que parassem de fazer barulho, que eu precisava estudar. Eles riam e moderavam a barulheira. Depois de um tempo, eles se acostumaram a conferir: se a luz do quarto estava acesa, já gritavam “Hoje vamos ficar quietos. Vai estudar, miúda!”.
Meu pai só vi duas vezes. Na primeira eu tinha seis anos e ele me levou pra passar o dia na casa dele e conhecer sua esposa e filhos. A segunda vez foi aos 16 anos. Ele me encontrou na rua, na garupa da moto de um amigo e repentinamente se lembrou que era pai. Mandou eu descer e ir pra casa, que filha dele não andava de moto. Ah, meu Senhor, filho mal havido nem sempre engole sapo – anote aí. Disse-lhe que não era meu pai, que não passava de um reprodutor. Depois disso nunca mais o vi. Tudo o que sei dele é que vive em Portugal.
A vida em Angola enchia de festa meu coração adolescente. Com os Escoteiros Marítimos da Praia do Bispo acampei em ilhas e praias distantes, participei de paradas militares, visitei hospitais e presídios. Com grupo de dança folclórica Rancho da Casa do Minho dancei em campeonatos e apresentações. Vi o nascer do sol na praia da Ponta da Ilha, andei de moto nas dunas da praia do Sol e acampei na paradisíaca ilha do Mussulo. No Baleizão comi prego no pão com Coca Cola. Nos bares à beira da praia comi santola, camarão, peixe no molho de dendê, muambá com pirão de milho. Eu nem sabia, senhor, que fabricava as lembranças mais caras. Um dia elas seriam os retalhos coloridos da minha colcha de saudades.
Tudo mudou em abril de 1974. Angola ansiava pela justa independência. Estávamos numa entressafra de tranquilidade. O terrorismo de 1960 quase não existia mais. Os guerrilheiros tinham sido rechaçados pelas tropas portuguesas. Porém, com as mudanças na política de Portugal, tudo mudou nas colônias lusitanas na África. Grândola Vila Morena deu a senha para os cravos florescerem nas armas. Marcelo Caetano caiu. O socialismo venceu em Portugal: Álvaro Cunhal, Mário Soares e seus camaradas, agora no poder, apoiaram a independência e o Movimento Pela Libertação de Angola, liderado por Agostinho Neto e patrocinado pela ex-URSS, Cuba e Alemanha Oriental. Mas no país existiam também a Frente Nacional de Libertação de Angola, de Holden Roberto, apoiada pela França e pela Bélgica; e a União Nacional pela Independência Total de Angola, de Jonas Savimbi, apoiada pelos Estados Unidos. Os dois grupos não aceitaram os favores de Portugal ao MPLA.
Iniciou ali, senhor, a grande guerra civil que devorou o meu país por três décadas.A violência aumentava a cada dia. Balas perdidas, rajadas de metralhadora, morteiros de bazuca e granada passaram a ser rotina. Quantas vezes tínhamos que nos jogar no chão, dentro da sala de aula ou de cinema? Lembro de um dia em que Jesus Christ Superstar estava na tela enquanto eu, deitada no chão no cine Tivoli, ouvia as balas assoviarem sobre a cabeça.
Era difícil para todos, mas quem tinha pele branca, como eu, caiu em um limbo. Eu não era colonizadora, nem exploradora. Era uma adolescente angolana, pobre e agora considerada inimiga. Em meados de março de 1975, começamos a cumprir o toque de recolher. A partir das 16h, brancos não podiam andar nas ruas sob pena de serem presos ou mortos por grupos guerrilheiros. Estes não eram mais chamados terroristas e sim aclamados como heróis da libertação. Havia assassinatos de homens brancos todo santo dia. As mulheres sofriam mais: eram seviciadas antes de morrer. Minha mãe rendeu-se ao medo: em junho daquele ano me mandou para Nova Lisboa, onde tínhamos familiares e as coisas estavam mais tranquilas.
Muitas familias estavam fugindo do norte do país e indo pra a nossa região, onde recebiam apoio da Cruz Vermelha Internacional para deixarem o País com destino a Portugal ou à África do Sul. Comecei a trabalhar como voluntária num dos postos da Cruz Vermelha. As caravanas do norte se multiplicavam. Eram tantas que houve dias em que não dormíamos. Engolíamos pedaços de pão enquanto limpávamos ferimentos, distribuíamos comida e dávamos informações. Quando conseguíamos parar por alguns minutos, encostávamos o corpo nas caixas de alimentos e dormíamos em pé mesmo.
A multidão rugia em desespero. Gente à procura da família, gente abatida e sem rumo. Derramavam grossas lágrimas, lamentavam-se em alta voz pelos parentes mortos, pelos bens perdidos, pelas emboscadas às caravanas. O bicho homem é bruto, meu senhor.
Lembro muito bem, ainda hoje, de uma caravana. De um dos carros desceu uma familia atacada na estrada. A mãe tinha uns olhos perdidos e carregava o filhinho no colo. Seu choro era um chicote que arrancava lascas da gente e tingia de cinza o vasto mundo. Implorava que lhe salvássemos o menino, mas ele, senhor, já estava morto. Nesse dia, lembro-me bem, rompi com Deus. Reneguei-o. Era bem certo que nenhum ser supremo e bom poderia criado tal humanidade perversa e tanta dor a fustigar as costas dos inocentes.
Aprendi, nessa época, que tudo o que está ruim pode piorar. Minha familia deixou Nova Lisboa, assim como meu namorado e a mãe dele. Eu fiquei. Aguardava minha mãe, que tentava sair de Luanda. De repente me vi sozinha, aos 16 anos, num país que se esfacelava e numa cidade em que os grupos guerrilheiros se enfrentavam para dominar o território. Agora havia tiroteios em toda parte. Passei a morar na sede da Cruz Vermelha. Finalmente minha mãe chegou e conseguimos uma carona para Sá da Bandeira, mais ao sul. Fomos de camião, minha mãe na boleia com o motorista e a esposa dele; eu e os filhos dele no meio da carga de batata. Até hoje, meu senhor, o cheiro de batata me agonia. É cheiro de fuga, de desesperança e perda.
Em Sá da Bandeira reencontramos meu namorado e a familia dele, com quem tinhamos combinado sair de Angola. A confusão era enorme. Gente andando de um lado pro outro, tentando encontrar familiares ou arrumar um jeito de sair dali, gente sem um centavo até para comprar água. Faltava comida, além de esperança.
Não lembro exatamente da data em que finalmente saímos em caravana (onze carros e um camião) à noite pelo meio da mata, com destino à fronteira com a África do Sul. Sei que era início de agosto. Durante a viagem encontramos duas patrulhas de guerrilheiros. A primeira foi mais tranquila, aceitaram o suborno de cigarros. Já a segunda foi apavorante: queriam nos prender de qualquer jeito. Segundo eles, éramos ladrões das riquezas de Angola. Todo aquele zelo patriótico não resistiu à propina. Além de cigarros e bebida alcoólica, demos dinheiro para que nos deixassem seguir. O sol começava a nascer quando encontramos uma coluna do exército da África do Sul. Ainda estávamos em território angolano, a cerca de 10 quilômetros da fronteira, mas eles nos escoltaram até um campo de refugiados já em território sul-africano. Foi o primeiro campo em que ficamos.
Eu sentia raiva, meu senhor. Muita raiva! Uma revolta surda contra os brancos portugueses, que nos exploraram durante séculos e agora nos viravam as costas dizendo que éramos brancos de segunda classe. Revolta contra os negros, por acharem que a diferença na cor das nossas peles fazia que fôssemos diferentes deles. Éramos todos angolanos, mas apenas nós estávamos sendo expulsos de nossa terra e não tínhamos para onde ir.
O acampamento era feito de barracas de campanha. Sabes como é, senhor, aquelas barracas verdes do exército? Na nossa barraca dormiam seis adultos e duas crianças. Cada um recebia um um cobertor e três refeições por dia. Comida pouca, ninguém ficava saciado, mas matava a fome. Estávamos agradecidos, pois os sul-africanos faziam mais por nós do que o governo de Portugal. Esse acampamento – destinado a angolanos e moçambicanos – era um local de filtragem. A alguns era vedada a possibilidade de ficar no país. Esses eram logo encaminhados ao grupo consular português e enviados ao aeroporto, onde aviões da África do Sul os levavam para Portugal. Outros eram mandados a outros campos de refugiados.
Nós, graças a meu futuro cunhado, que era engenheiro agrícola e já tinha uma promessa de emprego, fomos para outro campo. Escoltados por uma coluna do exército, seguimos para Tsumeb. Na estrada para Winduck, havia uma cidadezinha. Avistamos gente nos esperando. Abordaram o oficial do exército que nos conduzia e pediram para nos dar abrigo naquela noite. Desconhecidos encharcados de solidariedade, que queriam nos oferecer o alimento mais precioso, esperança.
Eu e minha mãe fomos para casa de um casal idoso que nos acolheu com uma refeição quente, um banho e uma cama quentinhos. Estava tanto frio. Pela manhã, logo depois do café, nos levaram à loja da filha deles, onde já estavam a minha futura cunhada e sogra. Disseram para escolhermos as roupas que quiséssemos. Nesse dia fiz as pazes com Deus. Aquelas pessoas me apresentaram o outro lado da humanidade, feita de bondade com quem está refém da tragédia. Só podiam ser emissários do Divino, anjos perdidos no interior da África.
Em Tsumeb, um novo acampamento, as mesmas barracas de campanha. Mas a comida era melhor, assim como o tratamento que recebíamos. Ficamos pouco tempo. Conseguimos ser aprovados na seleção, graças a meu futuro cunhado e por eu ter começado a servir como intérprete. Benditas aulas de inglês.
Mudamos de campo outra vez. Fomos para Grootfontein, mais próximo a Pretória. O campo era um presidio que estava sendo desativado. Restavam lá uns 3 ou 4 presos, todos idosos. O presidio era formado por várias casernas e eles nos separaram. Tinhamos refeitório com mesa e bancos, e a comida era surpreendente. Imagine, senhor, que comemos até sobremesa de maçã caramelada no forno. É que os presos eram os cozinheiros. Fiz amizade com um deles. Tinha 65 anos e estava preso há 30 pelo assassinato da esposa num acesso de ciúme. A filha não o visitava. Depois que saí do campo e ele da prisão, fui à casa dele. Era um homem gentil – como pudera fazer aquilo? Mistérios do coração humano que jamais saberei.
Continuei sendo intérprete junto à assistente social e ao diretor do campo. Meu futuro cunhado arrumou emprego numa fazenda. Meu namorado logo sairia, mas eu era menor de idade e não poderia deixar o campo. Estava dificil para minha mãe. Ir para Portugal estava fora de questão, dado o desprezo com que nos tratavam. Eu e Zé decidimos casar. Minha mãe passou a ser minha responsabilidade (acredita que até hoje ela fica muito zangada quando lembra disso?). E assim, no dia 6 de novembro de 1975, casei dentro de um presidio que funcionava como campo de refugiados. O diretor e a assistente social foram nossos padrinhos.
Os soldados que tomavam conta do campo fizeram uma cotinha e pagaram a nossa festa e a lua de mel num hotel na cidade. O casório teve bolo, vestido de noiva e tudo, viu? O Jeep do exército nos levou ao hotel. Os soldados ficaram dentro do Jeep vigiando para que não fugíssemos. De madrugada, acordei com dor de ouvido. Na recepção não havia remédios, as farmácias só vendiam medicação com receita. Os soldados me levaram para o hospital, onde fui atendida. Ao voltarmos para o campo, os soldados contaram para todo mundo a aventura. Não escapamos à gozação geral: “Nem os ouvidos poupaste à miúda, Zé?”
Casada pelas leis sul africanas, no dia 11 de novembro casei na Igreja e duas semanas depois casei novamente no consulado português. Em menos de um mês casei três vezes. Felizmente, com o mesmo homem.
E assim deixei minha terra. Um ano na África do Sul foi suficiente para sabermos que lá não era o nosso lugar. Além da cultura muito diferente, começavam a ocorrer ali os mesmos episódios violentos que havíamos testemunhado em Angola. Decidimos mudar. Escolhemos o Brasil, país que desde minha pré-adolescência eu sonhava conhecer.
Partimos para Portugal a fim de cuidar da burocracia. No dia 7 de fevereiro de 1977 zarpamos num navio italiano rumo a Santos, onde desembarcamos dez dias depois. Eu estava com seis meses de gravidez.
A imensa maioria dos brasileiros nos recebeu de braços abertos, principalmente as pessoas mais humildes. Alguns, mais abastados, nos tratavam friamente, mas nunca fomos hostilizados. Aos poucos aprendi a amar a terra nova, a querê-la a ponto de ficar amuada quando falam mal dela. Percorri este Brasil quase todo, conheci cada lugar que nem tens idéia, senhor. Andei por picadas, atravessei pontes que eram apenas duas tábuas paralelas, morrendo de medo que elas quebrassem e o carro despencasse. Comi queijo de coalho em casebres de gente mui simples e coração enorme. Ah, senhor, que país maravilhoso é esse teu Brasil!
Descasei, casei de novo.
Quando a saudade dava botes sobre a gente, o Walter fazia a muambá. Comprava cachos de dendê e tirava o óleo em casa mesmo. Era o único jeito de ficar igualzinho ao de Angola. Aqui as frutas são praticamente as mesmas que tínhamos, a temperatura e as praias também, mas não é a minha casa, entendes senhor? Aqui eu me sinto bem, mas falta o cheiro da minha terra, falta o cacimbo e a silhueta única do imbondeiro em meio à névoa. Há uma ausência que não consigo definir. Tudo tão igual, mas ao mesmo tempo diferente. Talvez a gente seja mesmo filho de nosso chão, não sei. Parece que nesta paisagem familiar falta a alma da minha terra, a casa que posso realmente chamar de minha.
Eis-me aqui, senhor, aos 60 anos, com três filhos e dois netos brasileiros. Sou feliz, bem sabes, mas a saudade é bicho traiçoeiro: quando a gente menos espera, ela surge, arrepiando a pele, cravando as unhas na carne, abrindo ocos no peito. Recolho então minhas lembranças, as músicas e fotos de minha terra, e choro. Mansamente.
Angola ainda vive em mim. Como tatuagem de alma."
(SONIA ZAGHETTO)
—-
Glossário:
Chitaka – Pequena fazenda
Mata-bicho – Lanche reforçado
Prego no pão – Pão quentinho com bife bem temperado
Santola – Caranguejo gigante
Muambá – Comida tipicamente angolana. Consiste de galinha cortada em pedaços e refogada no molho de dendê, com abobrinha, quiabo, cebola, alho e tomate.
Cacimbo ou Kacimbo– É o nome dado no nordeste de Angola à estação que ocorre entre maio e agosto e que se caracteriza por uma névoa intensa.
Imbondeiro – Baobá.
2 comentários:
Sr. Mário Lopes :
Gostei de ler estas suas descrições quase inacreditáveis face às tantas promessas e aldrabices que nos fizeram de má fé. Publiquei alguns livros (cronologia da História de Angola - " --ANGOLA - DATAS E FACTOS" , de 1482 a 2002, em 6 volumes. Tenho os blogues :
http://angola-brasil.blogspot.com --- e -- http://angola-brasil-portugal. blogspot.com. Desejo pedir-lhe permissão para transcrever algumas das suas passagens nesses meus blogs e nas respectivas rubricas. Os meus agradecimentos e cumprimentos. Roberto Correia (sourreia2@gmail.com )-- (Coimbra) --
Exmo Senhor
O Sr Mário Lopes não se importa de satisfazer seu pedido. Cumprimentos
Cumprimentos
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