Manifesto dos colonos fundadores de Moçâmedes sobre tráfico ilegal de escravos: 1860
"Vamos
 falar  dos grandes, digo, dos graves danos e perigos que desde já 
ameaçam os  moradores e donos das feitorias que ao longo desta costa se 
dedicam com  os seus escravos aos valioso ramo da industria da apanha da
 urzela,  danos e perigos estes, tanto mais a lamentar que por longe 
seriam  provenientes de algum acaso imprevisto, ou vaivém de sorte, são,
 pelo  contrário, expressamente causados pela vontade de criminosos 
manejos de  um só indivíduo que no menoscabo da leis e convenienciais 
sociais com  todo o descaramento exerce na costa o ilícito e nefando 
tráfico da  excravatura com o qual ameaça de total ruina a maior parte 
dos  estabelecimentos da apanha da urzela e pescaria."  
Lopes de Xavier Botelho, publicista
Lopes de Xavier Botelho, publicista
"Ano
 passado no  mês de Setembro, o Senhor Manoel José Correa, morador e 
proprietário do  sítio denominado Carumjaba, valendo-se da sua posição 
isolada, e  sobretudo contando com a total ausência dos cruzeiros nestas
 paragens  teve a criminosa audácia de receber em seu posto um barco 
espanhol que  por ele, Correa, expressamente convidado, vinha embarcar 
negros como de  facto os embarcou, acima de duzentos, e com eles seguiiu
 para o reino de  Havana."
"É sabido que   muito bem tomadas que sejam as precauções dos 
interessados em   semelhantes embarques de negros nunca se podem 
efectuar sem que isso   desse nos olhos aos que mais ou menos de longe  
 estanciam do local onde  neles se  efectuavam, motivo por que os 
escravos das vizinhas feitorias  viram com  seus olhos o sito embarque 
dos negros que o Sr. Manuel José  Correa fazia  a bordo do dito barco 
espanhol por ser feito de dia claro.  Por  consequencia, todos os demais
 feitores logo tiveram conhecimento  dele  e quanto bastou para 
manifestar espanto e alvoroço entre estes  vendo ter  chegado outra vez o
 tempo de embarque de escravos e que eles  também em  breve tocavam a 
sua vez. Logo em seguida disso tiveram início  nas  feitorias as grandes
 deserções em massa. Foi então quando ao Sr.  Narciso  Francisco de 
Sousa que estava apanhando urzela em S. Nicolau  fugiram de  uma só vez 
mais de 30 escravos, e a Ladislau  A. Magyar,  na  Lucira, sete. "   
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Em 1860, haviam decorrido já 11 anos após a chegada a Moçâmedes das colónias de Pernambuco (Brasil), em 1849 e em 1850, fugindo à onda de anti-lusitanismo gerada pela revolução praeeira, quando os colonos começavam a ver alguns resultados do trabalho investido nas actividades económicas pelas quais haviam enveredado no campo da agricultura, num manifesto endereçado ao Governador de Benguela pelos vários produtores de urzela (1), estes mostraram-se indignados com os prejuízos gerados pela tentativa de tráfico ilegal de escravos, levada a cabo por um "potentado" local (do Distrito) de nome Manuel José Correa.
Este caso, à primeira vista insólito porquanto se trata de uma manifestação formal de produtores de Moçâmedes contra o tráfico ilegal, algo que seria simplesmente impensável dez ou vinte anos antes, quando o tráfico fluía na legalidade, aconteceu porque a manifestação anti-tráfico dos produtores da urzela do distrito de Moçâmedes deu-se na verdade quando já há muito os navios patrulha ingleses e portugueses vigiavam a costa em busca de eventuais prevaricadores. Na realidade desde 12 de Dezembro de 1836 o tráfico de escravos dirigido para o Brasil e Américas fora abolido por Decreto , uma abolição proporcionada por um lado pela queda do absolutismo em Portugal, e o triunfo do liberalismo, numa fase em que Sá da Bandeira subira ao poder no quadro da revolução setembrista, e por outro, por influência de países fortemente industrializados como a Inglaterra, ávidos por se expandirem, que viam o tráfico como um entrave. Por esta altura a economia de Angola já transitara para o comércio lícito e procurava enveredar para o trabalho livre, ainda que nesta fase de transição dada a enorme carecia de braços de trabalho, a solução encontrada pelo governo português passasse pelo encaminhamento de escravos libertados de navios negreiros aprisionados, para as diversas actividades económicas em formação, onde, na condição de ex-escravos ou semi-livres, se obrigavam a trabalhar durante 10 anos para o avanço da economia de Angola.
Em finais dos anos cinquenta, sabia-se que o  
tráfico 
ilegal vigorava
 ainda na região do Congo (Angola). Havia notícia de que os embarques que 
antes eram legalmente efectuados a partir dos portos de Luanda e de 
Benguela, desde 1836 tinham passado a fazer-se em praias e pequenas enseadas 
entre o Ambriz e o rio Zaire, através de  traficantes que operavam na  
clandestinidade. Contudo  fazê-lo no sul de Angola, numa 
zona desértica, onde era escassa a população indígena,  era 
uma verdadeira anomalia.  A verdade é que havia notícia da presença 
de  um  navio negreiro espanhol, que 
fazia o  tráfico ilegal 
para Cuba, nas águas do Distrito de Moçâmedes,  situação que atemorizava tanto os 
serviçais escravos e ex-escravos como os proprietários. Aliás nesse tempo em que a fuga de ex-escravos recentemente libertados de navios negreiros aprisionados era enorme,  os agricultores corriam o risco de falência, pelo que  toda e qualquer suspeita de tráfico ilícito constituía um factor desestabilizador. Seria o caso dos proprietários das feitorias   destinadas exclusivamente
 à colheita da urzela,  um musgo com aplicação tintorial muito procurado   pelas industrias têxteis da Europa, pelo que  vários  produtores de urzela do distrito de Moçâmedes mostravam a sua indignação ao sentirem-se grandemente prejudicados com a perda da mão de obra de serviçais indígenas de que necessitavam para manter activa  a exploração.
O  perfil das operações de Manuel José  Correa, o responsável pelos  embarques ilegais em Moçâmedes, não revelava  nenhum tipo de organização  estruturada. Dir-se-ia que Correa actuava sozinho e não em  rede como faziam os  traficantes que actuavam a partir do rio Zaire. Ele era proprietário de uma propriedade no distrito de Moçâmedes. Afasta-se  assim a hipótese  de uma feitoria isolada para o tráfico ilegal na  região. Correa não  tinha barracões de escravos, nem agentes espalhados  pelo sul de Angola.  Antes de retomar o tráfico ilegal é provável que ele  se dedicasse à  colecta da urzela. Ora a verdade é que Correa era mais um dos produtores  da região, tal como todos aqueles que iriam se indignar diante do embarque  de mais de  200 escravos, organizado por ele em Setembro de 1859.
Visto   pelos escravos de outras feitorias que temiam pelo  retorno  do tráfico ilegal, o embarque ilegal perpretado por   Correa teve sérias consequências, porque não apenas levou a várias fugas das feitorias, o que mais afligia os  produtores da  urzela: perder a mão de obra que garantia a colecta da  urzela. Tinha-se  uma preocupação maior com os efeitos indirectos a partir  das embarques  ilegais na região: as fugas dos escravos.
Correa  segundo produtores de Mossâmedes roubava escravos para vender aos  navios negreiros espanhóis. Não se sabe se tal crime foi a ele atribuido  como um artificio para chamar a atenção das autoridades. Afinal,  dizia-se, era seu "costume antigo"  o de "roubar e sonegar" escravos  fugidos. Apesar disto, no entanto, nenhuma protecção fora antes escrita  pelos produtores. Escravos que se julgavam réus de algum delito,  procuravam por Correa para pedir "padrinho". Mais uma vez tem-se na  conta a aplicação de um costume típico da escravidão. Como já vimos no  interior através da fuga "chimbika", escravos insatisfeitos buscavam por  outros donos. Aparentemente algo parecido aconteceu em Mossâmedes  através dos escravos que buscavam Correa para pedir "padrinho".
" Temos que notar  ilustradissimo Sr, que entre os desgraçados escravos que o tal Sr Correa  levava a embarcar iam alguns roubados também - porque pelo que se sabe,  há muito tempo, é costume antigo deste sr. roubar e sonegar parte dos  escravos que nas suas fugas são capturados pela sua gente no sitio da  Carumjaba e mesmo parte daquelas que das feitorias vizinhas para lá  acodem a título de lhe pedirem "padrinho" por algum delito de que os  ditos julguem serem réus (...) não falando dos muitos moradores de  Mossâmedes que para sempre têm perdido os seus escravos, sendo  embarcados nos navios negreiros dos quais este homem imoral é agente  especial".
O  ápice do circulo das revoltas escravas deu-se na propriedade de Manuel  Paula Barboza. Sua feitoria tinha mais de cem escravos a desempenhar  várias tarefas: colecta de urzela, pescaria, além de agricultura. O  temor dos embarques ilegais também atingiram os escravos de Barboza.  Assim, uma grande da revolta escrava aconteceu em sua feitoria, e a  violencia extrema marcou este "holocautro". Após aguardar o anoitecer,  os escravos de Barboza saqueram e incendiaram a casa do proprietário.  Não o encontrando, em grande algazara, assassinaram o caixeiro de  Barbosa, fugindo depois para a liberdade nas terras do interior.
"Porém o mais calamitoso de todos esttes desastres e até horroroso no seu efeito, foi aquela fuga que o Senhor Manoel Paula Barboza sofreu no Inamangando onde se achava estabelecido há um bom par de anos, tendo empregados em diferentes misteres, como agricltura, apanha da urzela e pescaria, mais de 100 escravos, gente adulta, e de muitos anos de serviço. estes, então, que, por cúmulo da infelicidade tiveram ocasião de ver com os próprios olhos o embarque dos negros que se fazia a bordo do barco espanhol, no porto de Carunjaba, juraram desertar todos e até vingar-se do próprio senhor, pois supunham, e mesmo diziam, que já não restava duvida alguma em que depois de longos anos de serviço, com que com mais certeza deviam contar e de serem embarcados para alem mar - o dito juramento eles cumpriram à risca: pos dee repente armaram-se, sublevaram-se e invadem à boca da noite a casa do seu senhor, saquearam, e incendiaram, procuraram entre gritos furiosos o Sr Paulo Barboza, que por felicidade achamdo se ausente salvou-se, porém em lugar dele o seu infeliz caixeiro foi vítima expiatória do furor dos amotinados - entre mil torturas expirou aos golpes de azagaias e ainda com isso não contentes os furiosos escravos separaram-lhe a cabeça do tronco, o mutilado cadáver entregaram-no às chamas da casa incendiada e qual demonios do inferno entoavam cantigas e danças de roda do terrível holocauto da infeliz vitima. Saciado desta maneira o furos canibalesco, todos, grandes e pequenos, de ambos os sexos, levantaram e tomaram o caminho para as terras gentilicas. Foi pois, esta forma que o Sr Manoel da Paula Barboza, por fazerem os outros embarques de escravatura na sua vizinhamça, teve que sofrer valiosa perda de uns poucos contos de reis alem da cruel e dolorosa lembrança que lhe resta e restará da sorte infeliz do seu caixeiro, no que deverasw nós também todos sinceramente acompanhamos."
Na realidade o que os colonos pretendiam com o Manifesto de 1860 contra o tráfico, era acabar com o tráfico ilícito, mas manter a possibilidade de recurso à mão de obra semi-livre de que tanto necessitavam, e que que em detrimento do tráfico, possibilitaria o desenvolvimento da região, nesses tempos em que a fuga de escravos libertos era uma constante, ante o receio de novas capturas, situação que ameaçava de total ruína a maior parte dos estabelecimentos da apanha da urzela e das pescarias.
O caso da revolta de Mossâmedes demonstra que as relações entre escravos e senhores eram reguladas por compromissos segundo os quais os escravos tinham condições de conquistar certos espaços. Se quebrados tais compromissos podiam ter resultados desastrosos para os proprietários. Tais compromissos eram provavelmente construidos a partir de referências que os escravos mantinham de suas sociedades de origem no interior da África Central.
ORIGEM
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Nota à margem do texto:
Sobre o encaminhamento de escravos libertados de navios negreiros aprisionados, para as diversas actividades económicas em formação, onde, na condição de ex-escravos ou semi-livres, se obrigavam a trabalhar durante 10 anos para as actividades económicas em formação.
A
 partir dos números levantados pelo historiador Roquinaldo Ferreira 
podemos visualizar a presença destes trabalhadores nas seguintes 
localidades: até a década de 1850, com maior força no centro-sul 
angolano, entre Luanda e Benguela; após este período, nas regiões do 
norte, como em Ambriz, nos vultosos empreendimentos promovidos por 
comerciantes do tráfico atlântico que passaram a negociar produtos como 
óleo de palma, café, borracha e amendoim; e ainda no sul, na região de 
Moçamedes, na coleta de urzela e nas plantações de algodão desenvolvidas
 nos anos sessenta, em tempos de guerra civil estadunidense.1 
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  Sobre o temor dos embarques ilegais também atingiram os escravos de Barboza:
Ou ainda, nos anos de 1860, na região de Moçamedes, as fugas seguidas de revoltas motivadas pelo temor de uma possível retomada do tráfico ilegal, porque "supunham (os trabalhadores) e mesmo diziam que já não lhes restava dúvida alguma, em como depois de longos anos de serviço, com que - com mais certeza deviam contar, é de serem embarcados para além-mar".2
     Ou ainda, nos anos de 1860, na região de Moçamedes, as fugas seguidas de revoltas motivadas pelo temor de uma possível retomada do tráfico ilegal, porque "supunham (os trabalhadores) e mesmo diziam que já não lhes restava dúvida alguma, em como depois de longos anos de serviço, com que - com mais certeza deviam contar, é de serem embarcados para além-mar".2
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Sobre assassinatos ou tentativas de assassinatos de senhores por parte de seus escravizados:
De cunho mais violento, tratam-se de casos de assassinatos ou tentativas de assassinatos de senhores por parte de seus escravizados: a morte por apunhalamento de "dois cidadãos respeitáveis", Mendonça e Prudêncio, de Luanda; na região de Ambriz, ferimento à bala de "um respeitável decano dos facultativos da província"; o assassinato do comerciante Mota de Kasanje e a tentativa de envenenamento por arsênico da família de um "fabricante" de Luanda, afora "referências sobre escravos que ameaçavam, na rua, diversos transeuntes".3
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(1) Sobre a formação de Moçamedes na década de 1840 por migrantes portugueses oriundos do Brasil, Madeira e Algarve junto a uma sociedade africana composta de libertos do tráfico, engajados nos trabalhos agrícolas da região, ver: DIAS, Jill. Angola. In: ALEXANDRE, Valentim; DIAS, Jias. Nova História da Expansão Portuguesa: o império africano 1825-1890. Lisboa: Editorial Estampa, v.X, 1998. p.441-446.
(2) Representação dos produtores de urzela de Mossamedes contra o tráfico ilegal de escravos, em 24 de março de 1860, examinada por FERREIRA, Roquinaldo. Dos sertões ao Atlântico, p.85-89. [ Links ]
(3) Estas ações mais violentas de resistência de escravizados e libertos foram analisadas de modo diferente pelo historiador João Pedro Marques, que acredita na impossibilidade da interferência dos casos de resistência sobre o avanço do processo abolicionista português. Cf.: MARQUES, J.P. Quatro assassinatos e um retrocesso, p.107.

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